LIVRO ONLINE CONTOS DE HORROR HP LOVECRAFT

 
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O chamado de Cthulhu .................................................................................................................. 3
A Coisa no Umbral ....................................................................................................................... 24
Dagon .......................................................................................................................................... 25
O Depoimento de Randolph Carter............................................................................................. 30
O Festival ..................................................................................................................................... 34
O Horror de Dunwich .................................................................................................................. 40
O Horror no Museu ...
.................................................................................................................. 71

O chamado de Cthulhu
É concebível que tais grandes poderes ou seres tenham sobrevivido… sobrevivido de um
passado extremamente remoto, quando a consciência era provavelmente manifestada em
formas e contornos surgidos muito antes do advento da espécie humana… formas das quais
somente a poesia e a lenda preservaram uma tênue memória e chamaram-nas de deuses,
monstros, criaturas míticas das mais variadas espécies…
ALGERNON BLACKWOOD
I. O HORROR NA ARGILA
A coisa mais misericordiosa do mundo, creio eu, é a incapacidade da mente humana em
correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a negros
mares de infinito, e não está escrito pela Providência que devemos viajar longe. As ciências,
cada uma progredindo em sua própria direção, têm até agora nos causado pouco dano; mas
um dia a junção do conhecimento dissociado abrirá visões tão terríveis da realidade e de nossa
apavorante situação nela, que provavelmente ficaremos loucos por causa dessa revelação ou
fugiremos dessa luz mortal rumo à paz e à segurança de uma nova Idade das Trevas.
Os teosofistas fizeram conjecturas sobre a apavorante imensidão do ciclo cósmico, do qual
nosso mundo e a raça humana constituem meros incidentes transitórios. Eles aludiram a
estranhas sobrevivências em termos que congelariam o nosso sangue se não fossem
mascarados por ameno otimismo. Mas! não foi deles que veio o vislumbre das eras proibidas
que me arrepiam quando nelas penso e me enlouquecem quando com elas sonho; esse
vislumbre, como todos os pavorosos vislumbres da verdade, cintilou quando juntei duas peças
separadas no caso, uma velha notícia de jornal e as anotações de um professor já falecido.
Espero que ninguém mais venha a fazer essa junção; com certeza, se eu viver, nunca
fornecerei voluntariamente elo algum de tão nefasta cadeia. Acho que o professor também
pretendia guardar segredo sobre a parte que ele conhecia, e que teria destruído suas
anotações se a morte súbita não o tivesse levado antes.
Meu conhecimento da coisa começou no inverno de 1926 a 1927 com a morte do meu tio-avô,
George Gamell Angell, professor emérito de línguas semíticas da Universidade Brown, em
Providence, Rhode Island. O professor Angell gozava de grande renome como autoridade em
inscrições antigas e a ele recorriam com freqüência diretores de importantes museus, de modo
que seu falecimento, aos noventa e dois anos de idade, deve ser lembrado por muitos. A nível
local, esse interesse foi intensificado pela obscuridade da causa mortes. O professor retornava
do navio de Newport quando caiu de repente, segundo testemunhas, após ter sido empurrado
por um negro com jeito de marinheiro, saído de um dos suspeitos e escuros pátios na encosta
íngreme que formava um atalho entre o cais e a casa do finado na rua Williams. Os médicos
foram incapazes de achar qualquer distúrbio visível, mas concluíram, após perplexa discussão,
que alguma obscura lesão cardíaca, agravada pela subida brusca de tão íngreme colina por tão
idoso homem, fora responsável pelo óbito. Naquela época não vi motivo algum para discordar
desse diagnóstico, mas ultimamente sinto-me inclinado a questionar e mais do que questionar.
Como herdeiro e executor do meu tio-avô, que morrera viúvo e sem filhos, esperava-se que eu
examinasse seus papéis cuidadosamente, e com esse propósito levei todos os seus arquivos e
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caixas para minha residência em Boston. Grande parte do material que organizei será
publicado mais tarde pela Sociedade Arqueológica Americana, mas havia uma caixa que eu
achei extremamente enigmática e que me senti um tanto avesso a mostrá-la a outros olhos.
Havia sido fechada com cadeado e não encontrei a chave até que me ocorreu examinar o
chaveiro pessoal que o professor levava sempre no bolso. Consegui, de fato, abri-la, mas então
pareceu-me que foi só para dar de cara com outro segredo ainda maior e mais impermeável.
Pois qual poderia ser o significado do estranho baixo-relevo de argila e das esparsas anotações,
comentários e recortes que achei? Teria o meu tio, nos últimos anos de vida, se tornado
crédulo das mais superficiais imposturas? Resolvi que procuraria o excêntrico escultor
responsável por essa aparente perturbação da paz de espírito de um velho.
O baixo-relevo era um tosco retângulo com menos de dois dedos de espessura e uns doze a
quinze centímetros de comprimento, obviamente de origem moderna. O seu desenho,
contudo, nada tinha de moderno na atmosfera e no que sugeria; pois, embora os caprichos do
cubismo e do futurismo sejam muitos e desvairados, não reproduzem com freqüência aquela
regularidade críptica que se insinua na escrita pré-histórica. E a maior parte daqueles desenhos
com certeza parecia algum tipo de escrita, ainda que a minha memória, bastante familiarizada
com os papéis e coleções do meu tio, não conseguisse identificá-la ou sequer suspeitar de suas
afiliações mais remotas.
Acima desses hieróglifos aparentes havia uma figura de evidente intenção pictórica, embora
sua execução impressionista impedisse uma idéia muito clara de sua natureza. Parecia um tipo
de monstro, ou de símbolo representando um monstro, cuja forma só uma mente doentia
poderia conceber. Se eu disser que minha algo extravagante imaginação lhe atribuía ao
mesmo tempo os traços de um polvo, de um dragão e de uma caricatura humana, não estarei
sendo infiel ao espírito da coisa. Uma cabeça polpuda e tentaculada encimava um corpo
grotesco e escamoso dotado de asas rudimentares; mas era o contorno geral do todo que
chocava. Atrás da figura havia uma vaga sugestão de cenário de arquitetura ciclópica.
Essa singularidade era acompanhada, além de uma pilha de recortes de jornal, por escritos
com a caligrafia mais recente do professor Angell, sem qualquer pretensão a estilo literário. O
que parecia ser o documento principal tinha por título “CULTO DE CTHULHU” em letras de
fôrma, para evitar a leitura incorreta de palavra tão inaudita. Esse manuscrito estava dividido
em duas seções, a primeira das quais intitulada “1925 -Sonho e Interpretação do Sonho de H.
A. Wilcox, Rua Thomas, 7, Providence, R. L”, e a segunda, “Narrativa do Inspetor John R.
Lagrasse, Rua Bienville, 121, Nova Orleans, La., na reunião de 1908 da S. A. A. – Notas do
Mesmo, & Relato do Prof. Webb”. Todos os demais manuscritos eram notas breves, sendo
algumas delas relatos de sonhos esquisitos de diferentes pessoas, citações de livros e revistas
teosóficas (principalmente de A Atlântlda e a Perdida Lemúria de W. Scott-Elliott) ou ainda
comentários sobre antiquíssimos e ainda remanescentes sociedades secretas e cultos
proibidos, com referências a trechos de compêndios de mitologia e antropologia tais como O
Ramo de Ouro, de James G. Frazer, e Culto às Bruxas na Europa Ocidental, de Miss Murray. Os
recortes referiam-se basicamente a doenças mentais raras e surtos de alucinações coletivas na
primavera de 1925.
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A primeira metade do manuscrito principal narrava uma estória muito peculiar.
Aparentemente no dia 1 ° de março de 1925, um moço magro, moreno, de aspecto neurótico
e excitado, visitou o professor Angell trazendo consigo o singular baixo-relevo de argila, que
estava então recente e úmido. Seu cartão trazia o nome de Henry Anthony Wilcox e meu tio
reconhecera-o como o filho mais novo de uma excelente família que ele conhecia
superficialmente, e que estivera estudando escultura na Escola de Desenho de Rhode Island e
vivendo sozinho no edifício Fleur-de-Lys perto daquela instituição. Wilcox era um jovem
precoce de reconhecido talento porém grande excentricidade, e desde a infância despertara
atenção devido às estórias esdrúxulas e aos sonhos bizarros que tinha o hábito de contar. Ele
chamava a si mesmo de “psiquicamente hipersensível”, mas a gente convencional da antiga
cidade comercial considerava-o apenas “esquisitão”. Sem nunca se misturar muito com os seus,
gradualmente afastara-se do convívio social e só era conhecido de um pequeno grupo de
estetas de outras cidades. Mesmo o Clube de Arte de Providence, ansioso por preservar seu
conservadorismo, desistira de tê-lo entre seus membros.
Na ocasião da visita, continuava o manuscrito do professor, o escultor pediu abruptamente a
assistência do conhecimento arqueológico de seu anfitrião para identificar os hieróglifos do
baixo-relevo. Falava de um jeito sonhador e afetado que denotava pose e alienação; e foi com
certa rispidez que meu tio respondeu-lhe, pois a notória frescura do tablete indicava relação
com tudo menos com arqueologia. A réplica do jovem Wilcox, que impressionou meu tio o
bastante para que este a recordasse e a registrasse textualmente, foi feita num tom
fantasticamente poético que deve ter caracterizado toda a sua conversa e que desde então
verifiquei ser bem próprio dele; ele disse: “Realmente é novo, pois o fiz na noite passada
durante um sonho que tive com cidades estranhas; e sonhos são mais antigos do que a
cismarenta Tiro, a contemplativa Esfinge ou a Babilônia dos jardins suspensos.”
Foi então que ele começou a narrativa desconexa que subitamente despertou uma memória
adormecida e conquistou o interesse febril do meu tio. Um leve tremor de terra ocorrera na
noite anterior, o mais intenso registrado na Nova Inglaterra em anos, e afetara vivamente a
imaginação de Wilcox. Este, ao se recolher, tivera um sonho sem precedentes, com grandes
cidades ciclópicas de blocos titânicos e monólitos que alcançavam o céu, todos gotejando lodo
verde e impregnados de horror latente. Hieróglifos cobriam as paredes e colunas, e de algum
ponto indeterminado, abaixo, vinha uma voz que não era uma voz, e sim uma sensação caótica
que só a fantasia poderia transmudar em som, mas que ele tentou traduzir num amontoado
quase impronunciável de letras: “Cthulhu fhtagn “.
Essa mixórdia verbal foi a chave para a lembrança que excitou e perturbou o professor Angell.
Ele interrogou o escultor com minúcia científica e estudou com intensidade quase frenética o
baixo-relevo no qual o rapaz se encontrara trabalhando, enregelado e apenas com suas roupas
de dormir, quando acordou, atônito. Meu tio culpou sua velhice, Wilcox disse depois, por sua
demora em reconhecer tanto os hieróglifos quanto o desenho pictórico. Muitas das perguntas
dele pareceram altamente despropositadas ao visitante, especialmente as que tentavam
relacionar a figura com cultos ou sociedades estranhas; e Wilcox não pôde compreender as
repetidas promessas de silêncio que recebeu em troca de sua confissão de ser membro de
alguma difundida irmandade mística ou pagã. Quando o professor Angell se convenceu de que
o escultor realmente desconhecia qualquer culto ou sistema de ciência oculta, assediou seu
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visitante com pedidos de que viesse relatar-lhe futuramente os sonhos que voltasse a ter. Isso
deu frutos regulares, pois após a primeira entrevista o manuscrito registra visitas diárias do
rapaz, durante as quais ele narrava fragmentos surpreendentes de sua imagística noturna,
centrada sempre num assustador panorama ciclópico de megalitos escuros e gotej antes, com
uma voz ou inteligência subterrânea clamando monotonamente em enigmáticos impactos
sensórios. Os dois sons mais freqüentemente repetidos eram aqueles traduzidos pelas letras ”
Cthulhu ” e “R’lyeh “.
No dia 23 de março, continuava o manuscrito, Wilcox não apareceu; em sua residência
informaram que ele havia sido acometido por uma espécie desconhecida de febre e levado
para a casa de sua família na rua Waterman. Havia gritado à noite, acordando vários outros
artistas do prédio, e manifestara desde então apenas alternações de inconsciência e delírio.
Meu tio telefonou imediatamente para a família, e a partir daí acompanhou o caso de perto,
indo muitas vezes ao consultório do Dr. Tobey, o médico encarregado, na Rua Thayer. A mente
febril do rapaz aparentemente ocupava-se de coisas estranhíssimas, e o doutor de vez em
quando estremecia ao falar delas. Essas coisas não somente repetiam o que ele sonhara antes,
mas também incluíam uma coisa gigantesca “com milhas de altura” que caminhava ou se
movia. Em nenhum momento descrevera o objeto, mas ocasionais palavras frenéticas,
conforme repetidas pelo Dr. Tobey, convenceram o professor de que devia tratar-se da
inominável monstruosidade que Wilcox procurara representar em sua escultura do sono.
Referências a esse objeto, acrescentou o doutor, eram invariavelmente prelúdio à queda do
rapaz na letargia. Sua temperatura, curiosamente, não estava muito acima da normal; mas
todo o seu estado parecia indicar antes febre do que perturbação mental.
No dia 2 de abril, por volta das 3 da tarde, todos os sinais da enfermidade de Wilcox
desapareceram subitamente. Sentou-se empertigado na cama, atônito por encontrar-se em
casa e ignorando completamente o que acontecera em sonho ou realidade desde a noite de 22
de março. Tendo recebido alta do médico, voltou para o seu alojamento três dias depois;
porém não foi mais de nenhuma serventia para o professor Angell. Todos os vestígios de
sonhos bizarros haviam desaparecido com a convalescença, e meu tio não registrou mais seus
sonhos após uma semana de relatos inúteis e irrelevantes de visões absolutamente normais.
Neste ponto terminava a primeira parte do manuscrito, mas referências a algumas das
anotações dispersas deram-me muito o que pensar, tanto, na verdade, que somente o
enraizado ceticismo que então constituía minha filosofia pode explicar o fato de que eu
continuava duvidando do artista. As anotações em questão eram aquelas que descreviam os
sonhos de várias pessoas durante o mesmo período em que o jovem Wilcox tivera as suas
estranhas visões. Meu tio, ao que parece, havia rapidamente organizado um esquema
prodigiosamente amplo de investigação entre quase todos os amigos que podia interrogar sem
impertinência, pedindo-lhes relatos de seus sonhos de todas as noites e datas de quaisquer
visões incomuns a partir de certo dia. A receptividade ao seu pedido parece ter variado; mas
ele deve ter recebido, no mínimo, mais respostas do que um homem normal poderia dar conta
sem uma secretária. Essa correspondência original não foi preservada, porém suas anotações
constituíam um resumo abrangente e realmente significativo dela. As pessoas comuns da
sociedade e do mundo dos negócios o tradicional “sal da terra” da Nova Inglaterra – deram um
resultado quase completamente negativo, embora casos esparsos de impressões noturnas
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desagradáveis mas indefinidas apareçam aqui e ali, sempre entre 23 de março e 2 de abril – o
período de delírio do jovem Wilcox. Os homens de ciência não foram afetados em grau muito
maior, apesar de quatro casos de descrição vaga sugerirem vislumbres fugazes de paisagens
estrambóticas, e de um caso mencionar certo pavor de algo anormal.
Foi dos artistas e poetas que as respostas pertinentes vieram, e tenho certeza de que o pânico
teria se instaurado se eles tivessem podido comparar as anotações. Como eu não tinha as
cartas originais, meio que suspeitei que o compilador houvesse feito perguntas tendenciosas
ou organizado a correspondência em concordância com o que ele havia latentemente
resolvido ver. Por essa razão continuei a achar que Wilcox, tendo tomado conhecimento das
informações que o meu tio possuía, estivera pregando uma peça no veterano cientista. Essas
respostas de estetas contavam uma história perturbadora. Entre 28 de fevereiro e 2 de abril
uma grande proporção deles havia sonhado com coisas bizarras, sonhos cuja intensidade era
incomensuravelmente maior durante o período do delírio do escultor. Cerca de um quarto das
respostas falava de cenas e de sons que nada diferiam dos que Wilcox descrevera, e alguns
desses sonhadores confessaram um medo agudo da coisa gigantesca e inominável visível no
final. Um dos casos, que a anotação descreve com particular ênfase, era seríssimo. O indivíduo
em questão, um arquiteto de grande renome, inclinado à teosofia e ao ocultismo, foi
acometido de loucura violenta na data da crise do jovem Wilcox, e expirou vários meses mais
tarde após gritar incessantemente que o salvassem das garras de uma besta que escapara do
inferno. Se o meu tio tivesse se referido a esses casos por nome e não apenas por número, eu
teria tentado obter alguma corroboração e feito alguma investigação pessoal; do jeito que
estava, consegui localizar somente uns poucos missivistas. Todos estes, no entanto,
confirmaram as anotações plenamente. Muitas vezes tenho me perguntado se todas as
pessoas interrogadas pelo professor se sentiram tão perplexas quanto aquele grupo. Sorte
deles nunca terem recebido explicação nenhuma.
Os recortes de jornal, como já disse, mencionavam casos de pânico, manias e excentricidades
ocorridos durante o período em questão. O professor Angell deve ter empregado um escritório
especializado na coleta de recortes, pois o número de artigos era tremendo, e as fontes
espalhavam-se por todo o planeta. Um recorte falava de um suicídio noturno em Londres,
onde um sonâmbulo pulara de uma janela após um grito lancinante. Outro consistia numa
carta desconexa ao editor de um jornal na América do Sul, em que um fanático, baseado em
visões que tivera, predizia um futuro calamitoso. Um despacho da Califórnia descrevia uma
colônia de teosofistas envergando em massa túnicas brancas à espera de certo “glorioso
advento” que nunca chegava, ao passo que notícias da índia falavam reservadamente sobre
graves tumultos nativos por volta do fim de março. Orgias de vodu multiplicaram-se no Haiti e
postos avançados na África reportaram murmúrios agourentos. Oficiais norte-americanos nas
Filipinas encontraram hostilidade por parte de certas tribos nessa época e policiais de Nova
Iorque foram atacados por multidões de levantinos histéricos na noite de 22 para 23 de março.
O oeste da Irlanda também foi infestado de rumores inacreditáveis e lendas, e um pintor
fantástico chamado Ardois-Bonnot exibiu um delirante quadro intitulado Paísagem Onírica no
salão de primavera de Paris de 1926.E tão numerosos são os tumultos registrados em
hospícios que só por milagre a fraternidade médica deixou de notar estranhos paralelismos e
tirar conclusões mistificadas. Em suma, um surpreendente punhado de recortes, e é com
assombro que me lembro hoje do empedernido racionalismo com que os pus de lado. Mas eu
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estava então convencido de que o jovem Wilcox tivera conhecimento dos assuntos antigos
mencionados pelo professor.
II. O RELATO DO INSPETOR LEGRASSE
Os assuntos antigos que haviam feito o sonho e o baixo-relevo do escultor tão significativos
para o meu tio constituíam o tema da segunda metade do seu longo manuscrito. Parece que
anteriormente o professor Angell tinha visto uma vez os contornos infernais da inominada
monstruosidade, confundira-se diante dos hieróglifos desconhecidos e escutara as agourentas
sílabas que só podem ser grafadas como “Cthulhu”; e tudo isso interligado de forma tão
espantosa e horrível, que não é de admirar que tenha perseguido o jovem Wilcox com
perguntas e exigências de informações.
Essa prévia experiência ocorrera em 1908, dezessete anos antes, quando a Sociedade
Arqueológica Americana realizou seu encontro anual em Saint Louis. O professor Angell, como
convinha a alguém de sua autoridade e realizações, tivera um papel proeminente em todas as
deliberações, e foi um dos primeiros a serem abordados por diversos leigos que aproveitaram
a oportunidade para fazer perguntas e pedir opinião de peritos sobre certos problemas.
O principal desses leigos, que em breve se tornaria o foco de interesse de toda a reunião, foi
um homem de meia-idade e aparência convencional que tinha viajado desde Nova Orleans
para obter certa informação especial impossível de obter de qualquer fonte local. Seu nome
era John Raymond Legrasse e sua profissão era a de inspetor de polícia. Trazia com ele a razão
de sua visita, uma grotesca, repulsiva e aparentemente antiquíssima estatueta de pedra cuja
origem não conseguia determinar.
Não se deve imaginar que o inspetor Legrasse tivesse o menor interesse em arqueologia; ao
contrário, seu desejo de esclarecimento era movido por considerações puramente
profissionais. A estatueta, ídolo, fetiche ou o que quer que fosse, fora capturada alguns meses
antes nas florestas pantanosas do sul de Nova Orleans durante uma batida policial num
suposto culto de vodu; e tão singulares e medonhos eram os ritos ligados à peça, que a polícia
de imediato percebeu que dera de cara com um culto sinistro totalmente desconhecido para
eles e infinitamente mais diabólico que o mais negro dos círculos africanos de vodu. Sobre a
sua origem, além das estórias esdrúxulas e inacreditáveis arrancadas aos membros capturados,
absolutamente nada pôde ser descoberto. Daí a ansiedade da polícia por qualquer
conhecimento de coisas antigas que pudesse ajudá-la a identificar o símbolo aterrador e,
através dele, descobrir a fonte daquele culto.
O inspetor Legrasse não estava de forma alguma preparado para a sensação que a sua
intervenção causou. Um simples olhar ao objeto fora suficiente para lançar os homens de
ciência ali reunidos num estado de tensa excitação, e eles não perderam tempo em se
amontoar ao redor dele para encarar de perto a diminuta imagem cuja profunda estranheza e
aparência de antigüidade genuína e abismal indicavam panoramas arcaicos ainda por revelar.
Nenhuma escola conhecida de escultura animara aquele terrível objeto, e no entanto séculos,
até milênios pareciam gravados em sua baça e esverdeada superfície de pedra não identificada.
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A imagem, que foi finalmente passada devagar de mão em mão para exame mais atento e
cuidadoso, tinha entre quinze e dezoito centímetros de altura e era de elaborado artesanato.
Representava um monstro vagamente antropóide, mas com uma cabeça semelhante à de um
polvo e cujo rosto era uma massa de tentáculos, de corpo escamoso com aspecto elástico,
prodigiosas garras nas patas dianteiras e traseiras, e asas longas e estreitas atrás. Essa coisa,
que parecia imbuída de assustadora e inatural malignidade, tinha uma corpulência algo
intumescida e estava agachada ameaçadoramente sobre um bloco retangular ou pedestal
coberto de caracteres indecifráveis. As pontas das asas tocavam a beirada traseira do bloco, o
assento ocupava o centro e as compridas e recurvadas garras das patas traseiras dobradas
sobre si mesmas, agarravam a beirada dianteira e estendiam-se por um quarto da altura do
pedestal. A cabeça cefalópode estava inclinada para frente, de modo que as extremidades dos
tentáculos faciais varriam as costas das maciças patas dianteiras que agarravam os joelhos dos
membros traseiros. 0 aspecto geral era anormalmente vivido, e ainda mais sutilmente
assustador pelo fato de sua origem ser totalmente desconhecida. Embora sua vasta, espantosa
e incalculável antigüidade fosse inegável, a estatueta não apresentava ligação com nenhum
tipo de arte pertencente à mocidade da civilização, ou, na verdade, a qualquer época.
O seu próprio material era um mistério, pois a pedra lisa e negro-esverdeada com pintas
douradas ou iridescentes e estrias não se assemelhava a nada familiar à geologia ou à
mineralogia. Os caracteres ao longo da base eram igualmente intrigantes, e nenhum dos
cientistas ali presentes, apesar de representarem metade do conhecimento mundial nesse
campo, teve a menor noção sequer da mais remota filiação lingüística deles. Tal como o tema
e o material, esses caracteres pertenciam a alguma coisa horrivelmente distante e alheia à
humanidade como a conhecemos, algo que sugeria de forma assustadora antigos e profanos
ciclos de vida dos quais nosso mundo e nossas concepções não fazem parte.
No entanto, enquanto os vários cientistas balançavam a cabeça e admitiam-se derrotados
perante o enigma trazido pelo inspetor, havia na reunião um homem a quem pareceram
estranhamente familiares aquelas monstruosas forma e escrita, e que então falou com certa
hesitação do pouco que sabia a respeito. Ele era o falecido William Channing Webb, professor
de antropologia na Universidade de Princeton e explorador de considerável renome.
O professor Webb participara, quarenta e oito anos antes, de uma expedição à Groenlândia e à
Islândia em busca de inscrições rúnicas, que não conseguiu achar; e ao percorrer a costa oeste
da Groenlândia havia encontrado uma singular tribo de esquimós degenerados cuja religião,
uma curiosa forma de culto ao diabo, provocou-lhe calafrios com sua repelência e deliberada
sede de sangue. Tratava-se de um credo do qual os outros esquimós pouco sabiam, e que só
mencionavam com estremecimentos de horror, dizendo que vinha de eras terrivelmente
antigas, anteriores à criação do mundo. Além de ritos inenarráveis e sacrifícios humanos, havia
alguns esquisitos rituais hereditários dirigidos a um supremo diabo ancião ou tornasuk, dos
quais o professor Webb fizera uma cuidadosa transcrição fonética com a ajuda de um idoso
angekok ou bruxo-sacerdote, grafando os sons em caracteres romanos o melhor que pôde.
Porém, o que mais interessava era o fetiche que esse culto idolatrava e em torno do qual
dançavam quando a aurora boreal lambia os picos gelados. Segundo declarou o professor,
tratava-se de um tosco baixo relevo de pedra que compreendia uma figura medonha e
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algumas inscrições crípticas; e, até onde podia afirmar, coincidia, nos aspectos essenciais, com
a coisa bestial que se tornara centro das atenções na reunião.
Essas informações, recebidas com assombro e emoção pelos presentes à reunião, foram ainda
mais emocionantes para o inspetor Legrasse, que imediatamente começou a assediar o seu
informante com perguntas. Tendo anotado e transcrito um ritual oral entre os sectários
brejeiros que seus homens haviam prendido, pediu ao professor que procurasse lembrar o
melhor que pudesse das sílabas anotadas entre os esquimós diabolistas. Seguiu-se então uma
exaustiva comparação de detalhes e um momento de boquiaberto silêncio, quando tanto o
detetive quanto o cientista concordaram na identidade virtual da frase comum aos dois ritos
infernais tão distantes um do outro como se pertencessem a mundos diferentes. O que,
essencialmente, tanto os bruxos esquimós quanto os sacerdotes brejeiros da Louisiana
entoavam aos seus ídolos era algo semelhante ao que vai abaixo, sendo as divisões entre
palavras supostas por analogia com as quebras tradicionais na frase quando cantada em voz
alta:
“Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’naglfhtagn.”
Nesse ponto Legrasse levava vantagem sobre o professor Webb, pois vários dos seus
prisioneiros mestiços haviam-lhe repetido o que celebrantes mais velhos haviam-lhes dito
sobre o significado dessas palavras. Esse texto dizia mais ou menos o seguinte:
“Na sua casa em R’lyeh, Cthulhu morto espera sonhando.”
Então, em resposta às urgentes solicitações de todos, o inspetor Legrasse narrou, tão
detalhadamente quanto possível, sua experiência com os idólatras dos pântanos, contando
uma estória à qual pude ver que o meu tio atribuía enorme importância. Fazia lembrar os
sonhos mais desvairados dos mitômanos e teosofistas, além de revelar um grau surpreendente
de imaginação cósmica, que nunca se esperaria entre aqueles marginais e párias da sociedade.
No dia 1 ° de novembro de 1907 chegara à polícia de Nova Orleans um chamado frenético da
região de pântanos e lagoas ao sul. Os grileiros de lá, na maioria descendentes primitivos, mas
de boa índole, dos homens de Lafitte, estavam tomados do mais absoluto pânico por causa de
uma coisa desconhecida que viera sobre eles à noite. Tratava-se de vodu, aparentemente, mas
de uma espécie de vodu muito mais terrível do que qualquer outra que já tinham visto; e
algumas de suas mulheres e crianças haviam desaparecido desde que o malévolo tantã
começara a bater incessantemente bem para dentro das sombrias florestas, onde nenhum
morador da região se aventurava. Ouviam-se gritos insanos e berros apavorantes, cânticos que
gelavam o sangue e chamas demoníacas que bruxuleavam; e ninguém mais suportava aquilo,
acrescentou o assustado mensageiro.
Então um grupo de vinte policiais, em duas carruagens e um automóvel, havia partido no Fim
da tarde com o trêmulo grileiro como guia. No fim da estrada transitável desceram e
chapinharam por milhas em silêncio, em meio aos terríveis bosques de ciprestes onde nunca
raiava o dia. Medonhas raízes e malignas barbas-de-velho dificultavam a caminhada, e de vez
em quando uma pilha de pedras úmidas ou fragmentos de uma parede apodrecida
intensificavam, com sua sugestão de povoação sórdida, uma angústia que cada árvore mal
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formada e a profusão de fungos contribuía para criar. Por fim, a aldeia dos grileiros, um
ajuntamento miserável de cabanas, ficou à vista, e moradores histéricos acorreram para
refugiar-se em volta do grupo de lanternas balouçantes. O som abafado dos tantãs já se ouvia
ao longe, bem longe; e um grito agudo como um guincho vinha em intervalos desiguais
quando o vento mudava de direção. Também um clarão avermelhado parecia filtrar-se através
da pálida vegetação rasteira, oriundo de avenidas intermináveis de noite selvagem. Todos os
assustados grileiros recusaram-se terminantemente a dar um passo sequer rumo àquele culto
ímpio, de modo que o inspetor Legrasse e seus dezenove colegas embrenharam-se sem guia
nas arcadas negras de terror pelas quais nenhum deles jamais passara antes.
A região em que agora se aventuravam os policiais era tradicionalmente de má reputação,
desconhecida e inexplorada pelos brancos. Corriam lendas sobre um lago oculto nunca
contemplado por mortais, no qual vivia uma gigantesca e disforme criatura poliposa branca
com olhos luminosos; e os grileiros sussurravam que diabos com asas de morcego voavam
para fora de cavernas nas entranhas da terra à meia-noite para adorar aquele ser. Diziam que
ele estivera lá antes de D’Iberville, antes de La Salle, antes dos índios e antes mesmo dos
saudáveis animais e pássaros das florestas. A criatura era o pesadelo encarnado e vê-la
significava morrer. Mas também fazia os homens sonharem, por isso sabiam que deviam
manter-se afastados. A atual orgia vodu ocorria, de fato, no limite daquela área amaldiçoada,
daí o próprio local do culto ter talvez aterrorizado os grileiros mais do que os sons chocantes e
os incidentes.
Só a poesia ou a loucura poderiam descrever fielmente os barulhos ouvidos pelos homens de
Legrasse ao avançarem pelos atoleiros negros rumo ao clarão vermelho e aos tantãs abafados.
Existem sons característicos de homens e característicos de bestas, e é pavoroso escutar um
quando a fonte deveria produzir o outro. A fúria animal e a licenciosidade orgiástica ali eram
atiçadas a níveis demoníacos por uivos e êxtases guinchantes que reverberavam por aqueles
bosques cobertos de noite como tempestades pestilenciais emanadas dos abismos do inferno.
De vez em quando as ululações menos organizadas cessavam, e do que parecia um coro bem
treinado de vozes roucas, elevava-se como uma ladainha aquela frase ou ritual nefando:
“Ph’nglul’ mglw’nafh Cthulhu R’lych wgah’naglfhtagn. “
Foi então que os homens, tendo alcançado um local onde as árvores eram mais finas, de
repente avistaram o próprio espetáculo. Quatro deles cambalearam, um desfaleceu e dois
emitiram um grito frenético que a louca cacofonia da orgia afortunadamente encobriu.
Legrasse jogou água do pântano no rosto do homem desmaiado e todos ficaram trêmulos e
quase hipnotizados de horror.
Numa clareira natural do pântano havia uma ilha de relva com cerca de meio hectare, sem
árvores e toleravelmente seca. Nela saltava e se retorcia uma indescritível horda de
anormalidade humana, que só um Sime ou um Angarola poderiam pintar. Sem roupa alguma,
aquelas criaturas híbridas zurravam, berravam e se contorciam ao redor de uma monstruosa
fogueira circular, no meio da qual erguia-se, revelado por ocasionais frestas na cortina de
chamas, um imponente monólito de granito com uns dois metros e meio de altura; em cima
dele, numa pequenez incongruente, jazia a nefasta estatueta. De um amplo círculo de dez
cadafalsos dispostos a intervalos regulares, com o monólito cingido de chamas ao centro,
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pendiam de ponta-cabeça os corpos atrozmente mutilados dos indefesos grileiros que haviam
desaparecido. Era dentro desse círculo que a roda de adoradores pulava e rugia da esquerda
para a direita numa bacanal sem fim entre o anel de cadáveres e o anel de fogo.
Pode ter sido só imaginação, como podem ter sido apenas ecos, que induziram um dos
homens, um excitável hispânico, a julgar ter ouvido respostas antifonais ao ritual, vindas de
um distante e penumbroso ponto no fundo da floresta de antigas lendas e horrores. Mais
tarde encontrei e interroguei esse homem, Joseph D. Galvez, que mostrou ter uma imaginação
delirante; de fato, ele chegou ao extremo de sugerir ter escutado um leve rufiar de grandes
asas e vislumbrado olhos fulgurantes bem como um montanhoso vulto branco além das
árvores remotas mas eu suponho que ele andara assimilando muita superstição local.
Na verdade, a pausa horrorizada dos homens foi de duração relativamente curta. O dever
vinha em primeiro lugar; e embora houvesse quase cem celebrantes naquela horda, a polícia
confiou em suas armas de fogo e investiu resolutamente contra a nauseante turba. Por cinco
minutos o alarido e o caos resultantes foram indescritíveis. Golpes selvagens foram vibrados,
tiros foram disparados e fugas ocorreram, mas no final Legrasse pôde contar uns quarenta e
sete soturnos prisioneiros, os quais forçou a vestirem-se depressa e formar uma fila entre duas
fileiras de policiais. Cinco dos adoradores jaziam mortos e dois gravemente feridos foram
carregados em padiolas improvisadas por seus camaradas. A imagem sobre o monólito foi, é
lógico, cuidadosamente removida e levada embora por Legrasse.
Interrogados na chefatura de polícia após uma jornada tensa e extenuante, verificou-se que
todos os prisioneiros eram de classe social ínfima, mestiços e mentalmente perturbados. A
maioria era de marinheiros, e um magote de negros e mulatos, quase todos das índias
Ocidentais ou portugueses das ilhas de Cabo Verde, dava uma tintura de vodu ao culto
heterogêneo. Antes, porém, que muitas perguntas fossem feitas, ficou claro que se tratava de
algo muito mais profundo e antigo do que o fetichismo negro. Degradadas e ignorantes que
eram, aquelas criaturas atinham-se com surpreendente consistência à idéia central de seu
credo abominável.
Eles adoravam, segundo disseram, os Grandes Antigos, que viveram muitas eras antes da
existência do homem e que chegaram ao recém-criado mundo vindos do céu. Esses Antigos
haviam agora desaparecido no interior da terra e sob o mar; porém, mesmo mortos, haviam
transmitido seus segredos em sonhos ao primeiro homem, que instaurou um culto que jamais
morrera. Era esse o culto que professavam, e os prisioneiros afirmaram que ele sempre existira
e sempre existiria, oculto em distantes locais desertos e sombrios por todo o mundo, até o
tempo em que o sumo sacerdote Cthulhu, de sua escura morada na poderosa cidade de R’lyeh,
sob as águas do mar, se levantasse e pusesse de novo a terra sob seu domínio. Um dia ele
chamaria, quando as estrelas estivessem prontas, e o culto secreto estaria sempre à espera
para libertá-lo.
Até lá, nada mais seria dito. Havia um segredo que nem a tortura poderia extrair. A
humanidade não estava de forma alguma sozinha entre os seres conscientes da terra, pois
formas saíam das trevas para visitar os poucos fiéis. Mas esses não eram os Grandes Antigos.
Nenhum homem jamais vira os Antigos. O ídolo esculpido representava o grande Cthulhu, mas
ninguém poderia dizer se os outros eram ou não exatamente como ele. Ninguém era capaz
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hoje em dia de ler a antiga escrita, porém as coisas eram transmitidas por tradição oral. O
cântico ritual não era o segredo – este nunca era falado em voz alta, apenas sussurrado. O
cântico significava apenas isto: “Na sua casa em R’lyeh, Cthulhu morto espera sonhando”.
Apenas dois dos prisioneiros foram considerados sãos o bastante para serem enforcados; os
demais foram internados em diversas instituições. Todos negaram participação nos
assassinatos rituais e asseveraram que estes haviam sido obra dos Asas Negras, que tinham
vindo a eles oriundos do seu imemorial ponto de encontro na floresta assombrada. Mas desses
misteriosos aliados nenhum relato coerente pôde ser obtido. A maior parte do que a polícia
conseguiu averiguar veio de um mestiço fabulosamente idoso chamado Castro, que afirmava
ter viajado a portos longínquos e falado com líderes imortais do culto nas montanhas da China.
O velho Castro recordava-se de fragmentos de medonhas lendas que empalideciam as
especulações dos teosofistas e faziam homem e mundo parecerem recentes e efêmeros.
Houve épocas em que outros Seres dominavam a terra, e Eles haviam erigido cidades colossais.
De acordo com o que os chineses imortais lhe haviam dito, vestígios desses Seres podiam
ainda ser encontrados nas rochas ciclópicas em ilhas do Pacífico. Todos Eles haviam morrido
muitas eras antes da chegada do homem, mas havia artes capazes de fazê-los reviver quando
as estrelas retornassem às posições certas no ciclo da eternidade. Eles mesmos tinham vindo
das estrelas e trazido consigo Suas imagens.
Esses Grandes Antigos, prosseguiu Castro, não se compunham inteiramente de carne e ossos.
Tinham forma – não o provava aquela imagem talhada nas estrelas? -, mas essa forma não era
feita de matéria. Quando as estrelas assumiam a configuração correta, Eles podiam
transportar-se de um mundo para outro pelo espaço sideral; mas quando as estrelas não eram
favoráveis, Eles não podiam viver. Contudo, embora já não vivessem, Eles nunca
verdadeiramente morriam. Jaziam todos em suas moradas de pedra na grande cidade de
R’lyeh, preservados pelos encantamentos do poderoso Cthulhu para uma gloriosa ressurreição
quando as estrelas e a terra estivessem mais uma vez prontas para Eles. Chegado esse tempo,
porém, alguma força exterior precisaria liberar Seus corpos. Os encantamentos que Os
preservavam intactos também Os impediam de fazer o movimento inicial, e tudo que podiam
fazer era ficar despertos nas trevas e meditar, enquanto milhões de anos se escoavam. Sabiam
de tudo o que acontecia no universo, pois comunicavam-se por telepatia. Mesmo naquele
instante conversavam em Suas tumbas. Quando, após infindáveis eras de caos o primeiro
homem surgiu, os Grandes Antigos falaram aos mais sensíveis dentre eles dando forma aos
seus sonhos, pois só assim Sua linguagem conseguia alcançar as mentes carnosas dos
mamíferos.
Em seguida, sussurrou Castro, aqueles primeiros homens formaram o culto ao redor de
pequenos ídolos que os Grandes lhes haviam mostrado, ídolos trazidos de estrelas sombrias na
noite dos tempos. Aquele culto jamais morreria até que as estrelas ficassem propícias de novo,
e então os sacerdotes secretos tirariam o grande Cthulhu da Sua tumba para que Este fizesse
reviver os Seus súditos e retomasse o Seu domínio sobre a terra. O tempo seria fácil de
reconhecer, pois por essa época a humanidade já teria se tornado como os Grandes Antigos:
livres, selvagens, além do bem e do mal, ignorando leis e preceitos morais, com todo mundo
gritando, matando e farreando em meio a feroz alegria. Então os Antigos, libertados, ensinar-
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lhes-iam novas formas de berrar e matar e farrear com alegria desenfreada, e toda a terra se
inflamaria num holocausto de êxtase e liberdade. Até lá, cabia ao culto, mediante ritos
apropriados, manter viva a memória daqueles procedimentos antediluvianos e prefigurar a
profecia da volta d’Eles.
Em priscas eras homens eleitos haviam falado com os sepultados Antigos em sonhos, mas
então algo acontecera: a grande cidade de pedra de R’lyeh, com seus monólitos e sepulcros,
afundara sob as ondas, e as águas profundas, repletas do único mistério primordial que nem o
pensamento pode atravessar, haviam interrompido o intercâmbio espectral. Mas a memória
nunca morreu, e os sumos sacerdotes diziam que a cidade emergiria de novo quando as
estrelas se alinhassem corretamente. Então vieram das profundezas da terra os seus espíritos
negros, bolorentos e trevosos, cheios de rumores ancestrais colhidos em cavernas sob
esquecidos leitos oceânicos. Mas deles o velho Castro não ousou falar muito. Calou-se
apressadamente, e não houve persuasão ou sutileza capaz de extrair-lhe mais informações
sobre o assunto. Curiosamente, evitou também mencionar o tamanho dos Antigos. A respeito
do culto, afirmou crer que sua sede ficava nos desertos inacessíveis da Arábia, onde Irem, a
Cidade dos Pilares, sonha oculta e intacta. Não tinha relação com os cultos de bruxaria
europeus e, exceto por seus membros, era virtualmente desconhecido. Nenhum livro jamais
aludiu diretamente a ele, embora os chineses imortais dissessem que havia duplos sentidos no
Necronomicon, do árabe louco Abdul Alhazred, que os iniciados poderiam interpretar como
quisessem, especialmente o polêmico dístico:
Não está morto o que pode eternamente jazer, E com estranhas eras pode até a morte morrer.
Legrasse, bastante impressionado e não pouco estupefato, havia investigado em vão sobre as
afiliações históricas do culto. Aparentemente Castro dissera a verdade ao afirmar que era
totalmente secreto. As autoridades da Universidade de Tulane não puderam dar
esclarecimento algum tanto a respeito do culto quanto da imagem, e agora o detetive viera
consultar as maiores autoridades do país, sem nada obter além da estória da Groenlândia
contada pelo professor Webb.
O interesse febril despertado na reunião por Legrasse e sua narrativa, corroborada pela
estatueta, encontra eco na subseqüente correspondência dos que estavam presentes, embora
haja escassa menção ao incidente na publicação formal da sociedade. Cautela é a preocupação
máxima daqueles que estão acostumados à charlatanice e impostura ocasionais. Legrasse
emprestou a imagem por algum tempo ao professor Webb, mas com a morte deste, foi-lhe
devolvida e com ele permanecia quando a vi, não faz muito tempo. É uma coisa
verdadeiramente medonha, e inequivocamente aparentada à escultura sonhada e esculpida
pelo jovem Wilcox.
Não me surpreendeu que a narrativa do escultor tivesse alvoroçado o meu tio, pois que idéias
poderiam ocorrer-lhe, após saber o que Legrasse descobrira sobre o culto, ao ouvir um rapaz
sensível dizer-lhe que sonhara não somente a figura e os hieróglifos exatos da imagem
encontrada no pântano e do demoníaco baixo-relevo da Groenlândia, como também escutara
em seus sonhos pelo menos três das palavras precisas da fórmula emitida tanto pelos
diabolistas esquimós quanto pelos mestiços da Louisiana? Foi a coisa mais natural que o
professor Angell iniciasse uma investigação aprofundada, ainda que eu privadamente
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suspeitasse que o jovem Wilcox ouvira falar do culto de maneira indireta e tivesse inventado
uma série de sonhos para intensificar e manter o mistério, às custas do meu tio. As narrativas
de sonhos e os recortes coletados pelo professor eram, é claro, forte corroboração; mas o meu
racionalismo e a extravagância da coisa toda levaram-me a adotar o que julguei ser a
conclusão mais sensata. Assim, depois de estudar detidamente o manuscrito mais uma vez e
de correlacionar as anotações teosóficas e antropológicas na narrativa feita por Legrasse sobre
o culto, fiz uma viagem a Providence para ver o escultor e repreendê-lo devidamente por
divertir-se às custas de um homem letrado e idoso.
Wilcox ainda vivia sozinho no edifício Fleur-de-Lys, na Rua Thomas, uma hedionda imitação
vitoriana da arquitetura bretã do século xv1, que pavoneia sua fachada de estuque em meio às
lindas casas coloniais na antiga colina, e à sombra do mais esplêndido campanário georgiano
dos Estados Unidos. Encontrei-o trabalhando em seus aposentos, e de imediato constatei, a
julgar pelas suas peças espalhadas, que seu talento era de fato profundo e original. Acredito
que um dia ele será aclamado como um dos grandes decadentistas, pois cristalizou na argila e
um dia refletirá no mármore os pesadelos e fantasias que Arthur Machen evoca na prosa e
Clark Ashton Smith torna visível no verso e na pintura.
Moreno, franzino e de aspecto algo desleixado, ele se voltou languidamente ao me ouvir bater
à porta e, sem se levantar, perguntou-me a que vinha. Quando eu lhe disse quem eu era, ele
demonstrou certo interesse; pois meu tio despertara-lhe a curiosidade ao investigar seus
sonhos estranhos, embora nunca tivesse explicado a razão do seu interesse. Eu tampouco
expliquei, mas procurei sutilmente fazer com que se abrisse comigo.
Em pouco tempo fiquei convencido da sua absoluta sinceridade, pois falou nos sonhos de um
modo inequívoco. Os sonhos e o resíduo subconsciente deles haviam influenciado
profundamente a sua arte, e ele me mostrou uma estátua mórbida cujos contornos quase me
fizeram estremecer com a força de seu poder de negra evocação. Não se lembrava de ter visto
o original daquilo, exceto no seu próprio baixo-relevo onírico, mas os contornos haviam-se
formado insensivelmente sob suas mãos. Era, sem dúvida, o vulto gigantesco que ele entrevira
no seu delírio. Deixou claro nada saber sobre o culto secreto, salvo o que o infatigável
interrogatório do meu tio deixara escapar; e de novo me esforcei por imaginar algum modo
pelo qual ele pudesse ter recebido as estranhas impressões.
Falou de seus sonhos num modo estranhamente poético, fazendo-me ver com assustadora
nitidez a úmida cidade ciclópica de lodosa pedra verde (cuja geometria, ele enfatizou
singularmente, estava “toda errada”) e escutar com apavorada expectativa a evocação
incessante e quase mental oriunda do subterrâneo da terra: “Cthulhu fhtagn”, “Cthulhu
lhtagn”.
Essas palavras tinham feito parte daquele ritual macabro que falava do morto Cthulhu à espera,
sonhando, na sua tumba de pedra em R’lyeh, e senti-me profundamente abalado, apesar do
meu racionalismo. Eu tinha certeza de que Wilcox ouvira falar no culto por acaso, mas logo se
esquecera dele em meio à massa de suas leituras e imaginação igualmente bizarras. Mais tarde,
em virtude da impressionabilidade do moço, a lembrança achara expressão subconsciente em
sonhos, no baixo-relevo e na medonha estátua que eu agora via, de modo que sua impostura
sobre o meu tio fora totalmente inocente. O rapaz, ao mesmo tempo meio afetado e
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ligeiramente mal-educado, não era do tipo que eu jamais poderia vir a gostar; mas eu estava
ao menos disposto a reconhecer tanto o seu gênio quanto a sua honestidade. Despedi-me dele
amigavelmente, desejando-lhe todo o sucesso que seu talento promete.
A questão do culto continuava a me fascinar, e às vezes eu tinha visões de fama pessoal obtida
graças a pesquisas sobre sua origem e conexões. Visitei Nova Orleans, conversei com Legrasse
e outros participantes da batida policial, vi a monstruosa imagem e até entrevistei alguns
prisioneiros mestiços ainda vivos; o velho Castro, infelizmente, já morrera havia alguns anos. O
que ouvi então, de forma tão nítida e em primeira mão, embora não fosse mais que uma
confirmação detalhada daquilo que meu tio escrevera, voltou a me estimular, pois tive a
certeza de estar na pista de uma religião muito real, muito secreta e muito antiga, cuja
descoberta faria de mim um antropólogo de renome. Minha atitude era ainda de absoluto
materialismo, como gostaria que ainda fosse, e descartei com inexplicável má vontade a
coincidência entre os relatos de sonhos e os esquisitos recortes colecionados pelo professor
Angell.
Uma coisa que comecei a suspeitar e que agora infelizmente eu sei; é que a morte do meu tio
nada teve de natural. Ele caiu de uma ladeira estreita que saía de um antigo cais repleto de
mestiços estrangeiros, após um descuidado empurrão de um marinheiro negro. Não esqueci o
sangue misto e atividades navais dos membros do culto na Louisiana, e não me surpreenderia
se viesse a ouvir falar de métodos secretos e agulhas envenenadas tão implacáveis e antigas
quanto os rituais e credos crípticos. É verdade que Legrasse e seus homens foram deixados em
paz; mas na Noruega, um certo homem do mar, que viu coisas, morreu. Será que as
investigações mais profundas do meu tio, após o encontro com o escultor, não poderiam ter
chegado a ouvidos sinistros? Eu acho que o professor Angell morreu porque sabia demais ou
estava prestes a saber demais. Se terei o mesmo fim que ele, é o que me resta saber, pois
agora eu também sei demais.
III. A LOUCURA QUE VEIO DO MAR
Se aprouver aos céus conceder-me algum dia uma bênção, pedirei que seja o esquecimento
total dos resultados do mero acaso que fixou meus olhos num certo pedaço perdido de papel
que forrava uma prateleira. Não era algo com que eu normalmente tropeçaria no curso da
minha rotina diária, pois tratava-se de um velho número de um jornal australiano, o Sydney
Bulletin, de 18 de abril de 1925. A notícia escapara até mesmo ao escritório de recortes que,
na época de sua publicação, coletava avidamente material para a pesquisa do meu tio.
Eu havia praticamente deixado de lado minhas investigações sobre o que o professor Angell
chamava “Culto de Cthulhu”, e estava visitando um letrado amigo em Paterson, Nova Jersey,
curador de um museu local e renomado mineralogista. Um dia, examinando amostras de
reserva colocadas desordenadamente sobre as prateleiras de uma sala nos fundos do museu,
meu olhar foi atraído por uma estranha gravura num dos velhos jornais espalhados debaixo
das pedras. Era o exemplar do Sydney Bulletin a que me referi, pois meu amigo tinha amplas
ligações em todos os países imagináveis; e a figura era uma litografia de uma horrorosa
estatueta de pedra quase idêntica à que Legrasse encontrara no pântano.
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Ansiosamente afastando da folha de jornal os preciosos espécimes minerais, estudei a notícia
detalhadamente, mas fiquei desapontado ao ver que não era muito extensa. O que sugeria, no
entanto, era de imensa importância para minha investigação algo desalentada, e rasguei
cuidadosamente o recorte a fim de empreender ação imediata. Dizia o seguinte:
NAVIO ABANDONADO ENCONTRADO NO MAR
Vigilant chega rebocando iate neozelandês armado e avariado. Encontrados a bordo um
sobrevivente e um morto. Estória de batalha desesperada e mortes em alto-mar. Marinheiro
salvo recusa-se a dar detalhes da estranha experiência. Misterioso ídolo achado em seu poder.
Será aberto Inquérito.
O cargueiro da Morrison Co., Vigilant, proveniente de Valparaíso, atracou esta manhã no porto
de Darling, trazendo a reboque o avariado e inutilizado, mas fortemente armado, iate a vapor
Alert, com matrícula de Dunedin, N. Z., que fora avistado no dia 12 de abril na latitude sul 34°
21′ , longitude oeste 152° 17′ , com um homem vivo e um morto a bordo.
O Vigilant deixou Valparaíso a 25 de março e, no dia 2 de abril, sua rota foi consideravelmente
desviada para sul por fortíssimas tempestades e ondas monstruosas. Em 12 de abril foi
avistado o barco à deriva, e embora aparentemente abandonado pela tripulação, foram
encontrados a bordo um sobrevivente em estado de semi-delírio e um homem com evidências
de estar morto há mais de uma semana.
O sobrevivente agarrava um horrível ídolo de pedra de origem desconhecida e cerca de um pé
de altura, a respeito de cuja natureza as autoridades da Universidade de Sydney, da Royal
Society e do Museu de College Street confessaram a mais absoluta ignorância, e que o
sobrevivente afirma ter encontrado na cabina do iate, num pequeno relicário esculpido, de
formato comum.
Após recuperar a consciência, esse homem narrou uma estória excessivamente estranha de
pirataria e chacina. Seu nome é Gustaf Johansen, norueguês de alguma instrução, e servira
como segundo-oficial da escuna Emma, de Auckland, que zarpou de Callao a 20 de fevereiro,
com tripulação de onze homens.
A Emma, disse ele, foi retardada e largamente desviada de seu curso na direção sul pela
grande tempestade de 1 ° de março; no dia 22 desse mês, na latitude sul 49° 51′ e longitude
oeste 128° 34′ , encontrou o Alert, tripulado por um esquisito e mal-encarado grupo de
canacas e mestiços. Recebendo ordem peremptória de voltar, o capitão Collins recusou-se, ao
que o estranho grupo abriu fogo violentamente e sem aviso sobre a escuna, com uma bateria
peculiarmente pesada de canhões de bronze que faziam parte do equipamento do iate.
Os homens da Emma reagiram, prosseguiu o sobrevivente, e embora a escuna começasse a
afundar devido a tiros que a atingiram abaixo da linha de flutuação, conseguiram abordar a
embarcação inimiga e lutar corpo a corpo com os selvagens sobre o convés do iate, sendo
forçados a matá-los todos, o número destes sendo ligeiramente maior, por causa de seu modo
feroz e desesperado, ainda que despreparado, de lutar.
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Três homens da Emma, incluindo o capitão Collins e o primeiro-oficial Green, foram mortos, e
os oito restantes, sob comando do segundo-oficial Johansen, prosseguiram viagem no iate
capturado, seguindo na direção original a fim de constatar se havia alguma razão para a ordem
de retornar que tinham recebido.
No dia seguinte, ao que parece, desembarcaram numa pequena ilha, embora não conste a
existência de ilha alguma naquela parte do oceano. Seis homens morreram em terra, ainda
que Johansen seja estranhamente reticente sobre essa parte da estória, limitando-se a afirmar
que caíram num abismo rochoso.
Parece que mais tarde ele e um companheiro voltaram ao iate e tentaram prosseguir viagem,
mas foram atingidos pela tempestade do dia 2 de abril.
A partir desse dia até seu resgate no dia 12, o homem se lembra de pouca coisa, e não se
recorda sequer de quando William Briden, seu companheiro, morreu. A morte de Briden não
revela causa aparente e provavelmente deveu-se a choque emocional ou exposição contínua
às intempéries.
Notícias recebidas de Dunedin informam que o Alert era bem conhecido por lá como
navegador de cabotagem e que gozava de má reputação nos meios marítimos. Era de
propriedade de um curioso grupo de mestiços cujas freqüentes reuniões e viagens noturnas
aos bosques despertavam considerável curiosidade; zarpara com grande pressa logo depois da
tempestade e dos tremores de terra de 1 ° de marco.
Nosso correspondente em Auckland atribui à Emma e sua tripulação uma reputação excelente,
e Johansen é descrito como homem sóbrio e valoroso.
Amanhã o almirantado abrirá inquérito sobre o incidente, no qual serão feitos todos os
esforços para induzir Johansen a falar mais do que até o momento.
Isso era tudo, juntamente com a foto da imagem infernal; mas que sucessão de idéias
desencadeou na minha mente! Aqui estavam novos tesouros de informação sobre o Culto de
Cthulhu, bem como evidências de que possuía estranhos interesses no mar tanto quanto em
terra. Que motivo levara a tripulação de mestiços a ordenar o retorno da Emma enquanto
navegavam com aquele medonho ídolo? Qual era a ilha desconhecida onde seis membros da
tripulação da Emma haviam morrido e sobre a qual o imediato Johansen guardava tanto
segredo? O que haveria descoberto a investigação do almirantado e o que se saberia em
Dunedin sobre aquele culto nefasto? E o mais surpreendente de tudo: que profunda e
sobrenatural ligação de datas era essa que dava um significado maligno e agora inegável aos
vários episódios tão cuidadosamente anotados por meu tio?
A 1 ° de março (nosso 28 de fevereiro, segundo a hora do meridiano de Greenwich) haviam
ocorrido o terremoto e a tempestade. De Dunedin o Alert e sua revoltante tripulação haviam
zarpado ansiosamente, como se atendessem a um imperioso chamado, enquanto do outro
lado da terra poetas e artistas haviam começado a sonhar com uma estranha e lodosa cidade
ciclópica, e um jovem escultor moldara durante o sono a forma do temível Cthulhu. A 23 de
março a tripulação da Emma desembarcava numa ilha desconhecida, deixando ali seis mortos;
e na mesma data os sonhos de homens sensíveis assumiam grande nitidez e se ensombreciam
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com o pavor da perseguição maligna de um monstro gigantesco, ao passo que um arquiteto
enlouquecia e um escultor mergulhava repentinamente em total delírio! E o que dizer daquela
tempestade de 2 de abril – data em que cessaram todos os sonhos da cidade lodosa e Wilcox
emergiu incólume do cativeiro de sua estranha febre? O que dizer de tudo isso e das alusões
do velho Castro sobre os Antigos, submersos filhos das estrelas cujo reinado estava próximo,
do fervoroso culto que lhes era dedicado e do domínio que tenham sobre os sonhos? Estaria
eu cambaleando à beira de horrores cósmicos além da capacidade humana de suportá-los? Se
assim fosse, deveriam ser horrores apenas da mente, pois de alguma forma o dia 2 de abril
pusera fim a qualquer ameaça monstruosa que iniciara seu assédio contra a alma da
humanidade.
Naquela noite, após um dia inteiro de telegramas apressados e tomada de providências,
despedi-me do meu anfitrião e embarquei num trem para São Francisco. Em menos de um
mês estava em Dunedin, onde, contudo, descobri que pouco se sabia acerca dos estranhos
membros do culto que haviam freqüentado as velhas tavernas do cais. A ralé do porto era
comum demais para fazer jus a qualquer menção especial, embora se falasse vagamente sobre
uma excursão terra adentro que aqueles mestiços haviam feito, e durante a qual tênues
batidas de tambor e labaredas vermelhas nas colinas distantes tinham-se feito notar.
Em Auckland soube que Johansen havia retornado com os cabelos loiros totalmente brancos
após um interrogatório superficial e inconcludente em Sydney, e que depois vendera sua
pequena casa na Rua Oeste e zarpara com a esposa para seu antigo lar em Oslo. Nem aos seus
amigos quis contar sobre a sua eletrizante experiência mais do que contara aos oficiais do
almirantado, e o máximo que puderam fazer foi dar-me o endereço dele em Oslo.
Depois disso fui a Sydney e conversei sem proveito algum com marinheiros e integrantes do
tribunal marítimo. Vi o Alert, agora vendido e sendo usado como cargueiro no Cais Circular, em
Sydney Cove, mas nada ganhei com a visita à neutra embarcação. A imagem agachada, com
sua cabeça de polvo, corpo de dragão, asas escamosas e pedestal coberto de hieróglifos era
conservada no Museu de Hyde Park, e eu a estudei detidamente, constatando ser obra de
rematada e artística malignidade, dotada do mesmo mistério profundo, assustadora
antigüidade e estranheza alienígena de material que eu observara no espécime menor de
Legrasse. O curador me contou que os geólogos consideravam-na um monstruoso enigma,
pois juravam não haver no mundo rocha igual àquela. Então me lembrei, com um calafrio, do
que o velho Castro dissera a Legrasse sobre os primordiais Grandes: “Tinham vindo das
estrelas, trazendo consigo Suas imagens”.
Abalado por uma revolução mental como nunca experimentara antes, resolvi visitar o imediato
Johansen em Oslo. Embarcando rumo a Londres, mal cheguei lá e tomei imediatamente um
navio para a capital norueguesa, onde desembarquei em um dia de outono nos bem cuidados
cais à sombra do Egeberg.
O endereço de Johansen, segundo apurei, ficava na Cidade Velha do rei Harold Haardrada, o
bairro que manteve vivo o nome de Oslo durante os séculos em que a capital mascarou-se sob
o nome de “Cristiânia”. Fiz o breve trajeto de táxi, e foi com o coração palpitante que bati à
porta de um antigo e belo edifício com fachada de estuque. Atendeu-me uma mulher de rosto
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triste vestida de preto, e a decepção se abateu sobre mim quando ela me informou, num
inglês trôpego, que Gustaf Johansen havia morrido.
Ele não sobrevivera muito tempo após o seu regresso, contou-me sua viúva, pois os
acontecimentos no mar em 1925 haviam-no al quebrado. Johansen não contara à esposa mais
do que contara ao público, porém deixara um longo manuscrito – sobre “assuntos técnicos”,
segundo disse – escrito em inglês, com o propósito evidente de salvaguardá-la do perigo de
uma leitura casual. Durante um passeio por uma vi ela estreita próxima às docas de
Gothenburg, fora derrubado por um pesado fardo de jornais caído da janela de um sótão. Dois
marinheiros de Lascar imediatamente ajudaram-no a levantar-se, mas antes que a ambulância
chegasse, ele já estava morto. Os médicos não encontraram causa específica para o óbito,
atribuindo-o a problemas cardíacos e constituição debilitada.
Senti então remoer-me as entranhas aquele obscuro terror que nunca mais me deixará até
que eu também venha a repousar, “acidentalmente” ou de outra forma. Tendo persuadido a
viúva de que minha ligação com os “assuntos técnicos” de seu marido davam-me direito ao
manuscrito, levei o documento comigo e comecei a lê-lo no navio de volta a Londres.
A redação era simples e sem elegância de estilo – tentativa de marinheiro ingênuo de compor
um diário a posterióri – e procurava reconstituir, dia a dia, aquela última e fatídica viagem. Não
há por que transcrevê-lo na íntegra com toda a sua ilegibilidade e redundâncias, mas narrarei
o essencial do seu conteúdo para mostrar por que o barulho da água contra o casco do navio
tornou-se tão insuportável para mim que tampei meus ouvidos com algodão.
Johansen, graças a Deus, não sabia de tudo, mesmo tendo visto a cidade e a Coisa, mas nunca
voltarei a dormir calmamente de novo ao pensar nos horrores que espreitam incessantemente
a vida no tempo e no espaço, e naquelas ímpias blasfêmias oriundas de imemoriais estrelas
que sonham nas profundezas do mar, conhecidas e adoradas por um culto de pesadelo pronto
e ansioso por soltá-las sobre o mundo assim que outro terremoto traga de novo à tona sua
monstruosa cidade de pedra.
A viagem de Johansen havia começado exatamente como ele contou ao almirantado. A escuna
Emma, com lastro, deixara Auckland a 20 de fevereiro, e sentira toda a força da tempestade
causada pelo terremoto que deve ter feito emergir os horrores que preencheram os sonhos de
tantos homens. Recuperado o controle da embarcação, esta prosseguia normalmente quando
foi abordada pelo Alert a 22 de março, e pude sentir a tristeza do imediato ao descrever o
bombardeio e afundamento do seu barco. Dos satanistas trigueiros do Alert ele fala com
significativo horror. Havia neles algo de peculiarmente abominável que fazia com que a sua
destruição parecesse quase um dever, e Johansen demonstra ingênua surpresa frente à
acusação de desumanidade levantada contra o seu grupo durante os trabalhos da corte de
inquérito. Então, levados adiante pela curiosidade no iate capturado, sob o comando de
Johansen, os homens avistaram uma enorme coluna de pedra que se projetava fora do mar, e
na latitude sul 47° 9′ e longitude oeste 126° 43′ , deram com um litoral de lama, lodo e
alvenaria ciclópica coberta de musgo que não podia ser outra coisa senão a substância tangível
do supremo terror do planeta – a cadavérica cidade-pesadelo de R’lyeh, construída há
incontáveis eras antes da História pelos gigantescos e nefastos vultos procedentes das estrelas
sem luz. Ali jaziam o grande Cthulhu e suas hordas, ocultos em verdes criptas lodosas de onde
21
finalmente, após ciclos incalculáveis, emitiam os pensamentos que infundem medo nos sonhos
dos sensíveis e conclamam imperiosamente os fiéis a uma peregrinação de libertação e
restauração. Johansen nada suspeitava sobre isso, mas Deus sabe que ele logo veria o
bastante!
Suponho que apenas o cume de uma montanha, a revoltante cidadela coroada por um
monólito, onde estava sepultado o grande Cthulhu, emergiu verdadeiramente das águas.
Quando penso na extensão de tudo o que pode estar à espreita lá embaixo, quase tenho
vontade de me matar de uma vez. Johansen e seus homens estavam boquiabertos perante a
cósmica majestade daquela gotejante Babilônia de demônios ancestrais, e devem ter
adivinhado, sem maior orientação, que não se tratava de nada proveniente deste ou de
qualquer planeta são. Perplexo temor diante do incrível tamanho dos blocos de pedra
esverdeados, da estonteante altura do grande monólito esculpido e da assombrosa identidade
entre as colossais estátuas e baixos-relevos e a esdrúxula imagem encontrada no relicário do
Alert, é flagrante em cada linha da assustada descrição do imediato.
Sem ter qualquer noção da escola artística a que se dá o nome de futurismo, Johansen chegou
a algo muito próximo quando falou sobre a cidade; pois, ao invés de descrever qualquer
estrutura ou edifício definidos, ele se refere apenas às amplas impressões de vastos ângulos e
superfícies de pedra superfícies grandes demais para pertencer a qualquer coisa correta ou
apropriada nesta terra, e ímpias com aquelas horríveis imagens e hieróglifos. Menciono a
alusão dele a ângulos porque sugere algo que Wilcox me dissera sobre seus arrepiantes
sonhos; ele havia dito que a geometria do local do sonho era anormal, não-euclidiana, e
perturbadoramente repleta de esferas e dimensões alheias às nossas. Agora um marujo
iletrado sentia a mesma coisa encarando a terrível realidade.
Johansen e seus homens desembarcaram numa lamacenta encosta daquela monstruosa
acrópole, e galgaram com dificuldade os titânicos blocos escorregadios que não poderiam ser
uma escada para mortais. No céu, o próprio sol parecia distorcido quando visto através do
miasma polarizador que subia daquela perversão encharcada de mar, e uma serpenteante
ameaça e suspense pareciam espreitar de soslaio naqueles insanamente ilusórios ângulos de
rocha talhada, onde um segundo olhar mostrava concavidade após o primeiro ter mostrado
convexidade.
Algo muito próximo ao pavor já sobreviera a todos os exploradores antes que coisa mais
definida do que pedra, lodo e algas fosse vista. Cada um deles teria fugido se não temesse a
zombaria dos demais, e foi com entusiasmo mínimo que procuraram – em vão, como se veria
– alguma pequena lembrança para levar consigo.
Foi Rodrigues, o português, que galgou o pé do monólito e gritou o que havia encontrado. Os
demais seguiram-no e olharam cheios de curiosidade a imensa porta esculpida com o já
familiar baixo relevo da lula-dragão. Segundo Johansen, era como uma enorme porta de
celeiro; e todos julgaram ser uma porta devido ao dintel, umbral e batente ornamentados em
volta, embora não conseguissem determinar se era plana como um alçapão ou oblíqua como
uma porta externa de porão. Como Wilcox diria, a geometria daquele lugar era toda errada.
Não se podia ter certeza de que o mar e a terra fossem horizontais, daí a posição relativa de
tudo o mais parecer fantasmagoricamente variável.
22
Briden empurrou a pedra em diversos lugares, sem resultado. Em seguida Donovan tateou
delicadamente  as  beiradas,  pressionando  cada  ponto  em  separado.  Escalou
interminavelmente a grotesca cornija de pedra – isto é, diríamos “escalar” se a coisa não fosse
mesmo horizontal – enquanto os homens se perguntavam, atônitos, corno alguma porta no
universo poderia ser tão vasta. Então, muito devagar e suavemente, o painel de meio hectare
de extensão pôs-se a ceder para dentro na parte de cima, ao que puderam constatar que
estava equilibrada.
Donovan deslizou ou de alguma forma propulsou-se para baixo ou ao longo do batente e veio
juntar-se aos companheiros, e todos assistiram à estranha recessão do portal
monstruosamente esculpido. Naquela fantasia de distorção prismática, ele se movia
anomalamente em sentido diagonal, subvertendo todas as regras da matéria e da perspectiva.
A abertura era negra, de uma escuridão quase palpável. Aquela tenebrosidade tinha, com
efeito, uma qualidade positiva, pois escurecia partes das paredes internas que deveriam estar
claras, e na verdade se evolava como fumaça de seu imemorial aprisionamento, visivelmente
eclipsando o sol à medida em que se esquivava pelo céu encolhido e convexo com esvoaçantes
asas membranosas. O fedor que subiu das recém-abertas profundezas era insuportável, e logo
depois Hawkins, que tinha ouvido apurado, julgou captar um asqueroso chapinhar vindo lá de
baixo. Todos ficaram atentos, e continuavam atentos quando Aquilo assomou babosamente à
vista e, às apalpadelas, espremeu Sua gelatinosa imensidão verde através da passagem negra
para fora, ganhando o ar contaminado daquela peçonhenta cidade de loucura.
A caligrafia do pobre Johansen quase cedeu ao escrever essa parte. Dos seis homens que não
voltaram ao navio, ele acha que dois morreram de puro pavor naquele instante amaldiçoado.
A Coisa não pode ser descrita – não existem palavras capazes de expressar tais abismos de
loucura estridente e imemorial, tais contradições alienígenas de toda matéria, força e
harmonia cósmica. Uma montanha caminhava, ou cambaleava! Deus! Não admira que do
outro lado da terra um grande arquiteto enlouquecesse e o pobre Wilcox delirasse de febre
naquele instante telepático! A Criatura dos ídolos, o verde e pegajoso rebento das estrelas,
despertara para reclamar o que era seu. As estrelas estavam novamente alinhadas, e o que um
culto milenar falhara em fazer por fé, um bando de marinheiros inocentes fizera por acaso.
Após trilhões de anos, o grande Cthulhu estava solto mais uma vez, e ávido de prazer.
Três homens foram varridos pelas flácidas garras antes que alguém pudesse se voltar para
fugir. Que descansem em paz, se é que há algum descanso no universo. Foram eles Donovan,
Guerrera e Angstrom. Parker escorregou enquanto os outros três disparavam freneticamente
sobre panoramas intermináveis de rocha esverdeada rumo ao bote, e Johansen jura que ele foi
tragado por um ângulo de alvenaria que não devia estar lá, um ângulo que, sendo agudo,
comportava-se como se fosse obtuso. De modo que somente Briden e Johansen alcançaram o
bote, e remaram desesperadamente para o Alert enquanto a montanhosa monstruosidade
descia desajeitadamente pelas pedras limosas e hesitava, cambaleante, à beira d’água.
O vapor continuava a sair do iate a despeito da saída de todos os homens para a praia,
portanto bastou alguns momentos de febril corre-corre entre rodas e motores para fazer o
Alert partir. Lentamente, em meio aos horrores distorcidos daquele indescritível e infernal
cenário, o iate começou a singrar as águas mortíferas, enquanto sobre as pedras lavradas
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daquela praia sepulcral que não pertencia a este planeta, a Coisa titânica vinda das estrelas
espumava e vozeava como Polifemo praguejando contra o navio de Odisseu em fuga. Então,
mais ousado que o lendário ciclope, o grande Cthulhu deslizou oleosamente para dentro
d’água e começou a perseguir o iate, erguendo ondas com suas braçadas de potência cósmica.
Briden olhou para trás e enlouqueceu, com ocasionais acessos de riso, até que a morte foi
encontrá-lo certa noite na cabina, enquanto Johansen errava pelo convés a delirar.
Mas Johansen ainda não se rendera. Sabendo que a Coisa alcançaria facilmente o Alert antes
que o vapor atingisse a pressão máxima, optou por uma saída desesperada: regulando o motor
para velocidade total, correu como um raio ao convés e reverteu o timão. O mar cobriu-se de
remoinhos e espuma, e enquanto o vapor subia cada vez mais, o valente norueguês dirigiu a
nave contra a abominação gelatinosa que o perseguia erguendo-se das imundas ondas
espumantes como o castelo de popa de um galeão demoníaco. A medonha cabeça de polvo
com tentáculos retorcendo-se chegava quase à altura do gurupés do resoluto iate, mas
Johansen prosseguiu inabalavelmente.
Houve um estouro como o de uma bexiga rebentando, o derrame de uma nojeira lamacenta
como a que jorra de um peixe-lua partido, um fedor como de mil sepulturas abrindo-se de
chofre e um som que o cronista negou-se a registrar. Por um instante o barco foi
emporcalhado por uma nuvem verde, acre e cegante, e logo depois havia apenas um
empeçonhado fervilhar à ré, onde – Deus do Céu! a espalhada plasticidade daquele inominável
rebento sideral estava nebulosamente recompondo-se na sua execrável forma original,
distanciando-se cada vez mais à medida em que o Alert ganhava velocidade de seu vapor
ascendente.
Isso foi tudo. Depois disso Johansen limitou-se a contemplar o ídolo na cabina e a providenciar
comida para si e para o maníaco risonho do seu lado. Não tentou navegar depois daquela
façanha, pois a experiência como que lhe esvaziara a alma. Sobreveio então a tempestade de 2
de abril e uma concentração de nuvens que lhe obscureceram a consciência. Teve uma
sensação de turbilhão espectral por líquidos golfos de infinito, de Jornadas estupefacientes
através de universos giratórios numa cauda de cometa, e de mergulhos histéricos das
profundezas do inferno até a lua e da lua de volta às profundezas do inferno, tudo isso
animado por um coro gargalhante dos deuses ancestrais, disformes e hilários, e dos
zombeteiros demônios do Tártaro, verdes e com asas de morcego.
Saído desse sonho veio o socorro – o Vigilant, a corte do almirantado, as ruas de Dunedin e a
longa viagem de volta ao lar, à velha casa às margens do Egeberg. Não podia falar nada – tê-lo-
iam julgado louco. Ele haveria de escrever o que sabia antes que a morte chegasse, mas era
necessário que sua esposa de nada desconfiasse. A morte viria como uma bênção se ao menos
obliterasse as lembranças.
Esse foi o documento que eu li, e que então coloquei na caixa de metal junto com o baixo-
relevo e os papéis do professor Angell. A eles acrescentarei este meu relato -prova da minha
sanidade, no qual reuni as peças de algo que, espero, nunca mais ninguém volte a decifrar. Vi
tudo o que o universo pode conter de horror, e depois disso até mesmo os céus primaveris e
as flores de verão serão veneno para mim. Mas não creio que minha vida será longa. Como
meu tio se foi, como o pobre Johansen se foi, também eu irei. Sei demais, e o culto ainda vive.
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Cthulhu também vive ainda, acredito, naquele precipício de pedra que o vem abrigando desde
a infância do sol. Sua amaldiçoada cidade tornou a afundar, pois o Vigilant percorreu aquela
região após a tempestade de abril; mas seus adoradores na terra ainda urram, saltam e matam
ao redor de ídolos sobre monólitos em locais ermos e solitários.
Ele deve ter sido surpreendido pelo afundamento quando se achava no seu abismo negro, do
contrário o mundo inteiro estaria agora berrando de pavor e frenesi. Quem sabe qual será o
final? O que emergiu pode afundar, e o que afundou pode emergir. A repugnância suprema
aguarda sonhando nas profundezas e a podridão paira sobre as precárias cidades dos homens.
O tempo virá… mas não devo, nem posso pensar! Só me resta a esperança de que, se eu não
sobreviver a este manuscrito, meus testamenteiros tenham mais precaução que audácia e
impeçam que outros olhos o vejam.
A Coisa no Umbral
Morgan não é um literato; na verdade, ele mal consegue falar inglês com algum grau de
coerência. É isso o que me faz estranhar as palavras que ele escreveu, embora outros tenham
gargalhado.
Ele estava sozinho na noite em que aconteceu. Subitamente uma vontade incontrolável de
escrever lhe assomou, e tomando a pena na mão ele escreveu o seguinte:
Meu nome é Howard Phillips. Vivo na Rua College, 66, em Providence, Rhode Island. A 24 de
novembro de 1927 – pois não sei sequer em que ano estamos agora – adormeci e sonhei, e
desde então tem sido incapaz de despertar.
Meu sonho teve início num pântano úmido e atulhado de juncos que jazia sob um céu cinzento
de outono, com um desfiladeiro encapelado de rochas cobertas de liquens elevando-se ao
norte. Impelido por alguma motivação obscura, ascendi à uma fenda ou fissura nesse
gigantesco precipício, notando enquanto o fazia que as bocas negras de muitos buracos
terríveis estendendo-se de ambas as partes até as profundezas do platô de pedra.
Em vários pontos a passagem era coberta pelo chocalhar das partes superiores da fissura
estreita; esses lugares sendo excessivamente escuros, e proibindo a percepção de tais buracos
que possam ter existido ali. Em tal espaço escuro senti consciência de um singular acesso de
pânico, como se alguma sutil e incorpórea emanação do abismo estivesse engolindo meu
espírito; mas a escuridão era grande demais para que eu pudesse perceber a fonte de meu
alarme.
Concluindo, emergi sobre um platô de rocha musgosa e solo pobre, iluminado por um pálido
luar que havia substituído o orbe moribundo do dia. Lançando meus olhos ao redor, não vi
objeto vivo; mas estava sensível a uma comoção muito peculiar que vinha muito abaixo de
mim, entre os sussurrantes vestígios do pântano pestilento que eu havia acabado de
abandonar. Depois de caminhar por uma certa distância, encontrei os trilhos enferrujados de
uma ferrovia de rua, e as placas comidas de cupins ainda seguravam o trole em boas condições.
Acompanhando esta linha, logo dei com um carro amarelo de vestíbulos de número 1852 – de
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um tipo de dois vagões comum entre 1900 e 1910. Não estava tinindo, mas evidentemente
preparado para partir; o trole estando no fio e o freio aéreo de quando em vez pulsando
abaixo do chão. Entrei a bordo e olhei em vão pelo interruptor de luz – notando, enquanto o
fazia, a ausência de cabineiro, que assim implicavam a ausência do motorneiro. Então sentei-
me num dos bancos cruzados do veículo. Ouvi um farfalhar na grama esparsa à esquerda, e vi
as formar escuras de dois homens caminhando ao luar. Tinham os quepes de uma companhia
ferroviária, e não pude duvidar de que fossem o condutor e o motorneiro. Então um deles
fungou com presteza singular, e elevou o rosto para uivar para a lua. O outro caiu de quatro
para correr na direção do carro. Levantei-me de um salto e corri como louco para fora daquele
carro e atravessei intermináveis léguas de platô até que a exaustão me forçou a parar: fazendo
isto não porque o condutor tivesse caído de quatro, mas porque o rosto do motorneiro era um
simples cone branco com um tentáculo vermelho como sangue na ponta…
Eu estava ciente de que apenas sonhava, mas a própria consciência não me foi agradável.
Desde aquela noite pavorosa, tenho rezado apenas para despertar: isso não acontece!
Ao invés disso eu me encontro com um habitante deste terrível mundo dos sonhos! Aquela
primeira noite deu lugar à aurora, e caminhei sem rumo pelos pântanos solitários. Quando a
noite veio, eu ainda caminhava, esperando acordar. Mas subitamente abri caminho entre os
juncos e vi à minha frente o antigo bonde: e, a um lado, uma coisa com rosto em forma de
conte levantava sua cabeça e uivava estranhamente para o luar que se derramava!
Tem sido a mesma coisa todo dia. A noite sempre me leva àquele lugar de horror. Tenho
tentado não me mover com a chegada da noite, mas devo andar em meu sonambulismo, pois
sempre acordo com a coisa de terror uivando à minha frente na pálida luz do luar, e viro-me e
fujo como um louco.
Deus! Quando despertarei?
Foi isso o que Morgan escreveu. Eu iria à Rua College 66, em Providence, mas tenho medo do
que posso encontrar lá.
Texto originalmente publicado no livro A Tumba… e Outras Histórias
Dagon
Introdução
O conto “Dagon” foi escrito em 1917, quando Lovecraft estimulado por amigos resolve
retomar seus trabalhos de ficção. Este conto é intimamente ligado a “The Shadow Over
Innsmouth ” que ele veio há escrever 14 anos depois. Este último conto trata de um rapaz que
vai a assombrada e deserta vila de pescadores de Innsmouth investigar e descobre que seus
moradores tem estranhas relações com os deep ones, anfíbios humanóides que imitem um
repugnante odor de peixe e se comunicam com humanos através dos sonhos. Há anos atrás a
cidade fora tomada por influências de forasteiros que trouxeram a adoração de Dagon e a
maldição ao lugar. Os humanos cada vez mais assumiam formas de peixe até estarem prontos
para entrar na cidade ciclópica submersa de Dagon de nome Y’há-nthlei. Na vila os estranhos
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são mortos cruelmente e as mulheres oferecidas ao deus maligno para satisfazer e carregar o
fruto da cruel criatura. Tais histórias de fundo marítimo parecem revelar forte influência do
escritor inglês William Hope Hodgson (1877 – 1918) e suas histórias fantástica tendo o mar
como ambientação. “Dagon” foi filmado em 2001 pelo diretor Stuart Gordon, se baseando
principalmente no conto sobre a vila de Innsmouth e tido por fãs de Lovecraft ao redor do
mundo como o filme mais completo e bem feito sobre suas histórias.
DAGON
ESCREVO ISSO DEBAIXO de uma tensão mental considerável já que esta noite poderei não
estar mais vivo. Se um centavo e no final de meu suprimento da droga que, só ela, consegue
tornar minha vida tolerável, já não consigo suportar a tortura e irei atirar-me dessa janela de
sótão na rua esquálida lá em baixo. Não pensem que minha dependência da morfina tenha-me
tornado um fraco ou degenerado. Quando houverem lido estas páginas rabiscadas às pressas,
poderão imaginar, mesmo sem nunca perceber plenamente, por que preciso do olvido ou da
morte.
Foi num dos trechos mais abertos e pouco freqüentados do vasto Pacífico que o paquete onde
eu era comissário de bordo foi capturado pelo vaso de guerra alemão. A grande guerra estava,
então, em seu início, e as forças marítimas do bárbaro ainda não haviam mergulhado por
completo em sua posterior degradação. Sendo assim, nossa embarcação foi tomada como
legítima presa, enquanto nós, membros de sua tripulação, fomos tratados com toda a
equidade e consideração que nos eram devidas como prisioneiros navais. Era tão liberal, de
fato, a disciplina de nossos captores, que cinco dias depois de nos tomarem, consegui escapar,
sozinho, num pequeno barco equipado com água e provisões para muito tempo.
Quando enfim me vi livre e à deriva, não tinha muita noção de minha localização. Como nunca
havia sido um navegador experiente, eu só podia imaginar, vagamente, pelo sol e as estrelas,
que estava um pouco ao sul do Equador. Da latitude eu nada sabia, e não havia ilha nem linha
costeira à vista. O tempo manteve-se firme e durante dias sem conta eu vaguei sem destino
debaixo de um sol escaldante, esperando a passagem de algum navio ou ser atirado às praias
de alguma terra inabitável. Mas não surgiu navio nem terra e comecei a me desesperar em
minha solidão sobre a ondulante vastidão de interminável azul.
A mudança aconteceu enquanto eu dormia. Seus detalhes eu jamais saberei, pois, embora
agitado e povoado de sonhos, tive um sono contínuo. Quando afinal despertei, descobri-me
meio tragado pela extensão lamacenta de um infernal lodo negro que se estendia à minha
volta em monótonas ondulações até onde minha vista alcançava e onde, a certa distância,
estava enterrado meu barco.
Embora se possa perfeitamente imaginar que minha primeira sensação seria de espanto com
uma transformação tão prodigiosa e inesperada de cenário, eu, na verdade, fiquei mais
horrorizado do que espantado, pois havia no ar e no solo putrefato um caráter sinistro que me
arrepiou até o âmago de meu ser. A região toda fedia com as carcaças de peixes apodrecidos e
outras coisas menos descritíveis que eu vi projetadas da lama abjeta da interminável planície.
Talvez eu não devesse esperar transmitir em meras palavras a indizível repugnância que pode
existir num silêncio absoluto e numa imensidão estéril. Não havia nada ao alcance do ouvido e
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da visão, salvo uma vasta extensão de lodo preto, mas ainda assim o caráter absoluto do
silêncio e a homogeneidade da paisagem me oprimiram com um medo nauseante.
O sol ardia no alto de um céu sem nuvens que me parecia quase negro em sua impiedade, com
se refletisse o pântano escuro que tinha embaixo de meus pés. Arrastando-me para dentro do
barco encalhado, percebi que apenas uma teoria poderia explicar minha situação: por algum
tipo de erupção vulcânica sem precedentes, parte do leito do oceano devia ter sido impelida
para a superfície, expondo regiões que durante incontáveis milhões de anos ficaram
submersas debaixo de profundezas aquáticas imensuráveis. Era tão grande a extensão da nova
terra que se elevava por baixo de mim, que não consegui captar o mais tênue ruído do oceano,
por mais que forçasse os ouvidos. Também não havia qualquer ave marinha para pilhar as
coisas mortas.
Durante muitas horas, eu fiquei sentado, pensando e ruminando, no barco que estava caído de
lado e produzia um pouco de sombra à medida que o sol ia seguindo seu curso no céu. Com o
avanço do dia, o chão foi ficando menos pegajoso, indicando que ficaria seco o bastante para
permitir que andasse sobre ele dentro de pouco tempo. Dormi muito pouco naquela noite e,
no dia seguinte, preparei um farnel com água e comida para uma excursão terrestre em busca
do mar desaparecido e de um possível resgate.
Na terceira manhã, verifiquei que o solo já estava bem seco e permitiria que se caminhasse
sem problemas sobre ele. O cheiro de peixe era enlouquecedor, mas eu estava concentrado
demais em coisas sérias para me importar com desgraça tão pequena, e parti ousadamente
para um destino incerto. Caminhei a duras penas durante o dia todo na direção oeste, guiado
por um outeiro distante que se destacava em altura dos outros que existiam no deserto
acidentado. Acampei naquela noite, e, no dia seguinte, segui avançando para o outeiro,
embora aquele objeto parecesse estar pouca coisa mais perto do que da primeira vez em que
o vira. Na quarta noite, atingi a base do monte, que se mostrou muito mais alto do que
parecera à distância. Um vale interposto destacava seu perfil da superfície geral. Exausto
demais para subir, dormi à sombra da colina.
Não entendo por que meus sonhos foram tão agitados naquela noite, mas, antes da curva
fantasticamente acentuada da lua minguante ter-se erguido muito alto acima do lado oriental
da planície, acordei suando frio, decidido a não me deixar adormecer de novo. As visões como
as que havia tido eram demais para suporta-las de novo. E sob o brilho do luar, percebi como
foram insensatas as minhas caminhadas diurnas. Sem o ardor do sol escaldante, minha jornada
teria-me custado menos energia. Agora, enfim, eu me sentia perfeitamente capas de realizar a
escalada que me havia intimidado ao entardecer. Apanhei então o farnel e encaminhei-me
para a crista da elevação.
Já tive a oportunidade de mencionar que a monotonia constante da planície ondulada era-me
uma fonte de impreciso horror, mas creio que meu horror ficou maior quando alcancei o cume
do monte e olhei para o outro lado, para um imenso vale ou canhão cujos recessos negros a
lua ainda não se havia erguido o suficiente para iluminar. Senti-me no limiar do mundo,
olhando, por sobre a borda, para um caos insondável de escuridão perpétua. Em meio a meu
terror, perpassaram curiosas reminiscências do “Paraíso Perdido” 1 e da tenebrosa ascensão
de Satã pelos reinos informe das trevas.
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A medida que a Lua foi subindo ao céu, pude notar que as encostas do vale não eram tão
perpendiculares quanto eu imaginara. Saliências e afloramentos de rocha forneciam apoios
perfeitos para uma descida, além de que, cerca de trinta metros abaixo, o declive tornava-se
bastante ameno.
Impelido por um impulso que não consigo precisar, fui descendo com dificuldade pelas rochas
até parar na encosta menos íngreme abaixo, de onde fitei as profundezas estígias onde
nenhuma luz jamais penetrara.
De repente, minha atenção foi traída por um objeto enorme e singular na vertente oposta
erguendo-se abruptamente a cerca de cem jardas à minha frente, um objeto de brilho
esbranquiçado sob os raios da Lua ascendente. De início imaginei que se tratasse de uma
simples rocha gigantesca, mas estava pouco consciente de que seu contorno e sua posição não
eram uma obra puramente natural. Um exame mais de perto encheu-me de sensações que
não consigo exprimir, pois, apesar de seu tamanho imenso e sua posição num abismo que
ficara escondido no fundo do mar desde a juventude do mundo, percebi que o estranho objeto
era um monólito bem moldado cujo vulto maciço havia conhecido o artesanato e, talvez, a
adoração de criaturas vivas e pensantes.
Pasmo e assustado, mas não sem um certo frêmito de prazer do cientista ou do arqueólogo,
examinei com maior atenção o meu entorno. A Lua, agora no zênite, brilhava intensamente,
misteriosamente, sobre os penhascos abissais que ladeavam o abismo, revelando um extenso
curso d’água que corria sinuoso em seu fundo até se perder de vista em ambas as direções e
quase lambia meus pés enquanto eu estava ali, parado, na encosta. Do outro lado do vale, as
leves ondulações da água roçavam a base do ciclópeo monólito, sobre cuja superfície eu podia
agora distinguir inscrições e entalhes toscos. A escrita estava em um sistema de hieróglifos que
eu não conhecia e que era diferente de tudo que eu já vira em livros, consistindo, me sua
maior parte, de símbolos aquáticos estilizados como peixes, enguias, polvos, crustáceos,
moluscos, baleias, coisas assim. Era patente que diversos caracteres representavam coisas
marinhas desconhecidas do mundo moderno, mas cujas formas, em decomposição, eu havia
observado na planície erguida do oceano.
Foram os entalhes decorativos, porém, que mais me extasiavam. Havia um arranjo de baixos-
relevos, bem visível acima da água interposta por conta de seu enorme tamanho, cuja
temática teria invocado a inveja de Doré[1]. Imagino que aquelas coisas deviam supostamente
ilustrar pessoas – ao menos um certo tipo de pessoas, embora as criaturas fossem mostradas
divertindo-se como peixes nas águas de alguma gruta marinha ou venerando algum santuário
em forma de monólito também ao que tudo indica submerso. De seus rostos e formas, não
ouso falar com detalhes; sua mera lembrança me deixa aturdido. De um grotesco além da
imaginação de um Poe ou de um Bulwer, tinham um perfil infernalmente humano apesar das
mãos e apesar das mãos e pés palmados, dos lábios chocantemente largos e flácidos, dos
olhos saltados e vítreos, e outras feições ainda menos agradáveis de se lembrar. O curioso é
que pareciam ter sido cinzelados muito fora de proporção em relação ao cenário de fundo,
pois uma das criaturas era mostrada no ato de matar uma baleia representada com um
tamanho um pouco maior do que o seu, mas naquele momento eu achei que eram apenas os
deuses imaginários de alguma tribo primitiva, navegante e pescadora, alguma tribo cujos
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derradeiros descendentes teriam parecido muitas eras antes do primeiro ancestral do Homem
de Piltdown ou de Neanderthal haver nascido. Extasiado diante daquele inesperado vislumbre
de um passado além da imaginação do mais ousado antropólogo, fiquei ali cismado enquanto
a Lua provocava curiosos reflexos no plácido canal à minha frente.
Então, de repente, eu a vi. Com uma leve agitação para indicar sua subida à superfície, a coisa
emergiu para fora s das águas escuras. Enorme, polifêmica e repugnante, ela disparou como
um monstro fabuloso de um pesadelo para o monólito, ao redor do qual arrojou seus
gigantescos brancos escamosos enquanto inclinava a cabeça horripilante, produzindo sons
ritmados. Pensei ter enlouquecido, então.
De minha subida frenética da encosta e do penhasco, de minha delirante jornada de volta para
o barco encalhado, pouco me recordo. Creio que cantei muito e ri como louco quando era
incapaz de cantar. Tenho vagas recordações de uma grande tempestade algum tempo depois
de alcançar o barco. De qualquer forma, sei que ouvi o ribombar de trovões e outros ruídos
que a natureza produz somente em seus humores mais terríveis.
Quando sai das trevas, estava num hospital de San Francisco, para onde fora levado pelo
capitão de um navio americano que recolhera meu barco no meio do oceano. Em meu delírio,
falei muito, mas descobri que não deram muita atenção às minhas palavras. Meus salvadores
não sabiam nada a respeito de alguma terra que houvesse aflorado no Pacífico, e eu não
julguei necessário insistir em algo que sabia que eles não poderiam acreditar. Procurei certa
vez um famoso etnólogo e o diverti com perguntas curiosas sobre a antiga lenda filistina de
Dagon, o Deus-Peixe[2], mas, percebendo logo que ele era um racionalista incorrigível, não
insisti nas perguntas.
É durante a noite, especialmente quando a lua está muito curva e minguante, que eu vejo a
coisa. Tentei a morfina, mas a droga deu-me apenas um alívio temporário e arrastou-me para
suas garras como um escravo sem esperança. Sim, tendo escrito um relato completo para a
informação ou a desdenhosa diversão de meus semelhantes, agora pretendo acabar com tudo.
Muitas vezes me pergunto se tudo não teria passado de pura fantasmagoria – uma simples
fantasia febril enquanto eu jazia, castigado pelo sol e delirante, naquele barco descoberto
depois de minha fuga do vaso de guerra alemão. Isso eu me pergunto, mas sempre me vem
uma visão terrivelmente pavorosa em resposta. Não consigo pensar no mar profundo sem
estremecer com as coisas inomináveis que podem, neste exato momento, estar arrastando-se
e espoj ando-se em seu leito lamacento, adorando seus antigos ídolos de pedra e cinzelando à
sua própria e detestável semelhança em obeliscos submarinos de granito encharcado. Sonho
com o dia em que elas poderão ascender acima dos vagalhões para arrastar para o fundo, com
suas garras fétidas, os remanescentes de uma humanidade debilitada, exaurida pela guerra – o
dia em que a terra poderia afundar e o escuro leito do oceano erguer-se em meio a um
pandemônio universal.
O fim está próximo. Ouço um ruído à porta, como se um imenso corpo viscoso a estivesse
forçando. Ela não me encontrará. Deus, aquela mão! A janela! A janela!
30
O Depoimento de Randolph Carter
REPITO-VOS, CAVALHEIROS, que vosso interrogatório é inútil. Detende-me aqui para sempre,
se quiserdes; prendei-me ou executai-me se tendes necessidade de uma vítima para propiciar
a ilusão a que chamais justiça. Não posso porém, dizer mais do que já disse. Contei-vos, com
toda a sinceridade, tudo de que me lembro. Nada foi distorcido ou escamoteado, e se alguma
coisa permanecer vaga, é apenas devido à nuvem escura que caiu sobre meu espírito – essa
nuvem e a natureza nebulosa dos horrores que a fizeram abater-se sobre mim.
Digo mais uma vez: não sei do que foi feito de Harley Warren, embora pense – quaserezo para
isso – que ele está em oblivio pacífico, se é que existe, em algum lugar, coisa tão bem
aventurada. É verdade que por cinco anos fui seu melhor amigo e que, em parte compartilhei
de suas terríveis pesquisas sobre o desconhecido. Não negarei, conquanto minha memória
esteja insegura e vaga, que essa vossa testemunha nos possa ter visto juntos, na estrada de
Gainsville, caminhando na direção do Pântano do Cipreste Grande às onze e meia daquela
noite tenebrosa. Que levávamos lanternas elétricas, pás e um curioso rolo de fio, a que se
prendiam certos instrumentos, eu mesmo me disponho a afirmar, pois todas essas coisas
desempenharam um papel importante naquela cena hedionda que continua gravada à fogo
em minha memória abalada. Mas com relação ao que se seguiu e ao motivo pelo qual fui
encontrado sozinho e aturdido na margem do pântano, na manhã seguinte, devo insistir em
que nada sei, salvo o que já vos narrei repetidamente. Dizei-me que nada existe no pântano ou
em suas proximidades que pudesse constituir o cenário daquele episódio aterrador. Respondo
que que eu nada sabia além do que vi. Visão ou pesadelo, pode ter sido – e visão ou pesadelo
espero desesperadamente que tenha sido – mas, no entanto, é tudo o quanto minha mente
reteu do que ocorreu naquelas horas chocantes depois que saímos da vista dos homens. E por
que Harley Warren não voltou, somente ele ou seu espectro – ou alguma coisa inominável que
não sei descrever – poderão dizer.
Como já tive ocasião de afirmar, eu conhecia bem, e de certa forma dividia, os estudos
fantásticos de Harley Warren. De sua vasta coleção de livros estranhos e raros sobre temas
interditos, li todos os escritos nas línguas que domino, contudo esses são poucos em
comparação aos escritos em idiomas que desconheço. Na maioria, acredito, são em árabe; e o
compêndio de demoníaca inspiração que acarretou a tragédia – o livro que levava no bolso ao
abandonar o mundo – estava escrito em caracteres que jamais vi em parte alguma. Warren
jamais se dispôs a me dizer o que havia naquele livro. Quanto à natureza de nossos estudos…
precisarei repetir ainda uma vez que já não conservo deles plena compreensão? Parece-me até
misericordioso que seja assim, pois eram estudos terríveis, que eu levava a cabo mais por
relutante fascinação que por inclinação verdadeira. Warren sempre me dominou e às vezes eu
o temia. Lembro-me como estremeci ante sua expressão facial na noite anterior ao fato
hediondo, enquanto ele falava sem cessar de sua teoria – por que certos cadáveres nunca se
decompõem mas permanecem Íntegros em suas tumbas por mil anos. No entanto, já não o
temo mais, pois suspeito que ele conheceu horrores além do meu alcance. Agora temo por ele.
Mais uma vez repito: não tenho nenhuma lembrança clara de nosso intuito naquela noite.
Decerto teria muito a ver com o livro que Warren levava consigo – aquele livro antigo, num
alfabeto indecifrável e que lhe chegara da índia um mês antes – mas juro que não sei o que
esperávamos encontrar. Vossa testemunha declara que nos viu às onze e meia na estrada de
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Gainsville, seguindo na direção do Pântano do Cipreste Grande. É provável que isso seja
verdade, mas não me lembro com nitidez. A imagem cauterizada em minha alma é apenas de
uma cena, e deve ter sido bem depois da meia noite, pois via-se uma pálida lua crescente no
céu vaporoso.
O lugar era um cemitério antigo. Tão antigo que eu me sobressaltava ante os inúmeros indícios
de anos imemoriais. Era numa depressão profunda e úmida, coberta de mato alto, musgo e
curiosas ervas rasteiras, envolvido por um vago fedorque minha fantasia ociosa associava
absurdamente a pedras putrefatas. Por toda a parte havia sinais de abandono e decrepitude e
eu parecia perseguido pela idéia de Warren: nós éramos as primeiras criaturas vivas a invadir
um silêncio letal de séculos. Sobre a borda do vale, uma lua crescente, lânguida e
enlanguescente, espreitava através dos vapores repulsivos que pareciam emanar de
catacumbas ignotas, e seus raios débeis e bruxuleantes faziam-me discernir um aglomerado
repelente de lápides, urnas, cenotáfios e mausoléus, todos esboroantes, cobertos de musgo e
manchados de umidade, e em parte ocultos pela luxuriância obscena da vegetação insalubre.
A primeira impressão vivida que tenho de minha própria presença nessa necrópole terrível
refere-se ao ato de deter-me com Warren diante de um certo sepulcro semi obliterado e de
arrojar em seu interior certos fardos que, aparentemente estiváramos carregando. Notei então
que trazia comigo uma lanterna elétrica e duas pás, ao passo que meu companheiro portava
uma lanterna semelhante e um aparelho telefônico portátil. Não se disse qualquer palavra,
pois o local e a missão pareciam-nos conhecidos. E sem delongas tomamos das pás e
começamos a afastar as ervas, agrama e a terra da cova rasa e arcaica. Após expormos toda a
sua superfície, que consistia em três imensas lages de granito, recuamos alguns passos para
examinar o ossuário. Warren parecia estar fazendo alguns cálculos mentais. Depois voltou ao
sepulcro e, usando a pá como alavanca, tentou erguer a laje que ficava mais próxima de uma
ruína de pedra e que pode ter sido outrora um monumento. Não conseguindo seu intento, fez
un gesto para que eu o auxiliasse. Por fim, nossos esforços combinados fizeram com que a
pedra se soltasse. Levantamo-la e a arredamos do lugar.
Com a remoção da laje, ficou à vista uma abertura negra, da qual irrompeu um efluxo de gases
miasmáticos, tão nauseantes que saltamos para trás, tomados de horror. Após um intervalo,
entretanto, aproximamo-nos novamente da cova e achamos as exalações menos intoleráveis.
Nossas lanternas revelaram o alto de um lance de degraus, dos quais gotejava um licor
repugnante e que eram delimitados por paredes úmidas recobertas de bolor. E agora, pela
primeira vez minha memória registra emissão de palavras. Warran falava-me longamente, em
sua cálida voz de tenor, uma voz singularmente incólume ao ambiente lúgubre.
“Peço perdão por pedir-te que permaneças na superfície”, disse ele, “mas seria criminoso
permitir que alguém de nervos tão frágeis descesse até lá. Não podes imaginar, mesmo pelo
que leste e pelo que eu te disse, as coisas que terei de ler e de fazer. Trata-se de um trabalho
diabólico, Carter , e duvido que algum homem que não tenha a sensibilidade empedernida
pudesse ver aquelas coisas e voltar vivo e são. Não é desejo ofender-te e Deus sabe o quanto
eu gostaria de levar-te comigo. Mas de certa forma a responsabilidade é minha e eu não seria
capaz de arrastar um feixe de nervos como tu à morte ou à loucura quase certa. Digo-te, não
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podes imaginar o que seja realmente a coisa! Mas prometomanter-te informadode cada passo
meu pelo telefone – vês que disponho de fio suficiente para chegar ao centro da terra e voltar!”
Ainda ressoam em minha memória essas palavras, pronunciadas tranqüilamente. E ainda me
recordo de meus protestos. Eu parecia desesperadamente ansioso por acompanhar meu
amigo para aquelas profundezas sepulcrais, mas ele se mostrava de uma obtinação inflexível.
A certo momento, ameaçou abandonar a expedição caso eu insistisse. A ameaça tinha peso,
pois só ele possuía a chave do que procurávamos. De tudo isso ainda me lembro, muito
embora já não saiba que espécie de coisa buscávamos. Depois de haver obtido minha
relutante aquiescência a seu plano, Warren pegou o rolo de fio e ajustou seus instrumentos. A
um gesto seu, peguei um destes e sentei-me numa lápide vetusta e descolorida, junto da
abertura recém-exposta. Depois ele apertou-me a mão, sobraçou o rolo de fio e desapareceu
naquele indescritível ossuário.
Durante um minuto ainda percebi o brilho da lanterna e escutei o roçagar do fio, enquanto
Warren o estendia pelo chão; mas o brilho da luz sumiu repentinamente, como se ele
houvesse dobrado uma esquina na escada de pedra e quase ao mesmo tempo o som cessou
igualmente. Eu estava só, porém ligado às profundezas desconhecidas por aqueles cordéis
mágicos cuja superfície isolada verdejava sobre os raios esforçados do exangue quarto-
crescente.
A cada momento eu consultava o relógio, à luz da lanterna elétrica e, tomado de ansiedade
febril, procurava ouvir alguma coisa no receptor do telefone. Entretanto, durante mais de um
quarto de hora nada ouvi. Então o instrumento emitiu um estalido e eu chamei meu amigo
com voz tensa. Por apreensivo que me sentisse, eu não estava preparado entretanto para as
palavras que subiram daquela cova hedionda, em tons mais alarmados e hesitantes do que eu
já havia escutado de Harley Warren. Ele, que se despedira de mim com tamanha calma havia
pouco, agora me chamava lá de baixo num sussurro titubeante, mais pressago que um grito
sonoríssimo:
“Meu Deus! Se pudesse ver o que estou vendo!”
Não pude Responder. Mudo, só fiz esperar. Ouvi novamente as palavras agitadas:
Carter, é terrível… monstruoso… inacreditável!”
Dessa vez a voz não me faltou e despejei no aparelho um jorro de indagações excitadas.
Aterrorizado, não cessava de repetir:”Warren, o que foi? O que foi?”
Mais uma vez escutei a voz de meu amigo, ainda repassada de medo e agora aparentemente
impregnada de desespero:
“Não posso dizer-te, Carter! É demasiado incrível… não ouso contar… nenhum homem poderia
saber e sobreviver… Santo Deus! Jamais sonhei com isso!”
Voltou o silêncio, apenas quebrado pela torrente de perguntas sobressaltadas que eu fazia.
Ouvi então novamente a voz de Warren, num tom de delirante consternação:
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“Carter! Pelo amor de Deus, repõe a Laje no lugar e sai disso se puderes! Deixa tudo mais e
corre… é tua última oportunidade! Faz o que eu digo e não peça explicações!”
Eu escutava, mas só conseguia repetir minhas perguntas frenéticas. Em meu redor estavam as
tumbas, a escuridão e as sombras; abaixo de mim, algum perigo que sobrepujava o alcance da
imaginação humana. Mas meu amigo corria mais perigo que eu e sobre meu medo passou um
vago ressentimento de que ele me julgasse capaz de abandoná-lo em tal situação. Novos
estalidos e após uma pausa, ouvi o grito angustiado de Carter:
“Te manda! Pelo amor de Deus, põe a laje no lugar e te manda, Carter!”
Alguma coisa na gíria juvenil de meu companheiro, evidentemente transtornado, liberou
minhas faculdades. Formei e gritei uma resolução, “Warren, agüenta! Vou descer!” No entanto,
diante dessa proposta o tom de meu interlocutor transformou-se num grito de completo
desespero:
“Não! Não compreendes! É tarde demais… e por minha própria culpa. Põe a laje no lugar e
corre… não há mais nada que tu ou outra pessoa possa fazer!”
Seu tom de voz mudou novamente, adquirindo dessa vez mais suavidade, como que
traduzindo resignação sem esperança. Contudo, para mim ele permanecia tenso de ansiedade.
“Depressa… antes que seja tarde demais!”
Tentei não lhe dar ouvidos. Tentei quebrar a paralisia que me detinha e cumprir minhs
promessa de descer para ajudá-lo. Seu próximo murmúrio, todavia, ainda me encontrou inerte,
preso de puro horror.
“Carter… corre! Não adianta… tens de ir… antes um que dois… a laje…”
Uma pausa, mais estalidos, e depois a voz débil de Warren:
“Quase acabado agora… não dificultes ainda mais… cobre esses degraus malditos e foge para
salvar a vida… estás perdendo tempo… adeus, Carter… não voltarei a ver-te.”
Nesse ponto, o murmúrio de Warren converteu-se em grito, um grito que aos poucos se
transmudou em uivo, carregado de todo o horror das eras…
“Malditas coisas infernais… legiões… meu Deus! Te manda! Te manda! TE MANDAAAAAÜ!
“Depois disso, caiu o silêncio. Ignoro por quantos éons permaneci sentado ali, estupefato.
Sussurrando, murmurando, gritando, berrando naquele telefone. Vezes sem conta, no
transcurso daqueles éons, sussurrei, murmurei, chamei, gritei e berrei “Warrren! Warren;
Responde… estás aí?
Foi então que sobreveio o cúmulo do horror… a cois ainacreditável, inimaginável, quase
impronunciável. Já disse que foi como se passassem éons depois de Warren emitir sua
derradeira advertência desesperada, e que apenas meus gritos quebravam agora o silêncio
horrífico. Contudo depois de algum tempo houve um novo estalido no telefone e eu apurei os
ouvidos. Mais uma vez chamei: “Warren estás aí?, e como resposta ouvi aquilo que lançou
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essa nuvem sobre minha alma. Não tento, senhores, explicar aquilo… aquela voz… nem posso
abalançar-me a descrevê-la em minúcia, uma vez que as palavras iniciais roubaram minha
consciência e criaram um vazio mental que se estende ao momento em que despertei no
Hospital. Direi que a voz era profunda? Cava? Gelatinosa? Remota? Sobrenatural? Inumana?
Desencarnada? Que direi? Ela marcou o fim de minha experiência e é o fim de minha história.
Eu a escutei, e de nada mais tomei conhecimento… escutei-a enquanto permanecia sentado,
petrificado naquele cemitério desconhecido do vale, em meio às pedras carcomidas e aos
túmulos em ruínas, junto à vegetação pútrida e aos vapores miasmáticos… escutei-a subindo
das profundezas mais absconsas daquele maldito sepulcro aberto, enquanto assistia à dança
de sombras amorfas, necrófagas, à luz mortiça de uma lua exangue.
E o que ela disse foi:
“IDIOTA, WARREN ESTÁ MORTO!”
O Festival
Efficiut Daemones, ut quae non sunt, sic tamen quasi sint, conspicienda bominibus exhibeant.
Lactantius
EU ESTAVA LONGE de casa, e o feitiço do mar oriental havia caído sobre mim. Ao crepúsculo,
eu o ouvia batendo nas rochas e sabia que ele ficava logo depois do monte onde os salgueiros
se contorciam contra o céu claro e as primeiras estrelas da noite. E como meus pais haviam me
chamado para a velha cidade mais adiante, atravessei a neve rasa e necém-caída ao longo da
estrada que subia até onde Aldebarã bailava por entre as árvores; na direção da cidade muito
antiga, que eu nunca tinha visto, mas com a qual várias vezes sonhara.
Era o Yuletide, que os homens chamam de Natal, embora saibam em seus corações que é mais
antigo que Belém e a Babilônia, mais velho que Mênfis e a Humanidade. Era o Yuletide, e eu
havia vindo finalmente à antiga cidade costeira onde minha gente havia habitado e mantido a
festividade mesmo nos velhos tempos, quando ela era proibida; onde eles também haviam
instruído seus filhos a manterem o festival uma vez a cada século, para que a memória dos
segredos primais não fosse esquecida. Minha gente era antiga, e já eram antigos mesmo
quando esta terra foi colonizada, três séculos atrás. E eles eram estranhos, porque tinham
vindo como um povo furtivo e obscuro dos jardins de papoulas narcóticas do sul, e falavam
outra língua antes de aprenderem a língua dos pescadores de olhos azuis. E eles estavam
dispersos, e compartilhavam apenas os rituais de mistérios que nenhum vivente poderia
entender. Eu era o único que tinha voltado aquela noite à velha cidade pesqueira, como rezava
a lenda que apenas os pobres e solitários lembravam.
Então, além do cume da colina, vi Kingsport com seus moinhos e campanários, telhados e
chaminés, cais e pequenas pontes, salgueiros e cemitérios; intermináveis labirintos de ruas
íngremes, estreitas e tortas, vertiginosas torres de igrejas que o tempo não ousou tocar; uma
confusão incessante de casas coloniais amontoadas e espalhadas em todos os ângulos e níveis
como os blocos desordenados dos folguedos de ulna criança; antigüidades pairando com asas
cinzentas abertas em telhados duplos embranquecidos pelo inverno; janelas cortinadas, uma a
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uma piscando na escuridão fria para se juntar a Orion e as estrelas arcaicas. E contra os cais
apodrecidos o mar se chocava; o mar, imemorial e cheio de segredos, do qual as pessoas
tinham vindo nos tempos antigos.
Ao lado do topo da rua, uma elevação ainda mais alta começava, desolada e exposta ao vento,
e vi que era um campo santo, onde lápides negras fincavam-se fantasmagoricamente através
da neve, como as unhas apodrecidas do cadáver de um gigante. A rua era vazia e solitária, e às
vezes eu pensava ouvir, no vento, um horrível e distante gemido, como um enforcamento. Eles
haviam enforcado quatro parentes meus por bruxaria em 1692, mas eu não sabia exatamente
onde.
No cruzamento da rua com a ladeira voltada para o mar, fiquei atento aos sons alegres de um
entardecer de aldeia, mas não os escutei. Então lembrei da época, e achei que esse velho povo
puritano possivelmente tinha costumes natalinos estranhos a mim, cheios de orações
silenciosas. Então, depois que eu não ouvi sons alegres nem vi peregrinos, fiquei observando
as casas silenciosamente iluminadas, e os muros sombrios de pedras, onde as placas de velhas
lojas e tavernas batiam à brisa salgada, e as aidravas grotescas penduradas nas portas
cintilavam ao longo das ruas sem pavimento, à luz de pequenas janelas cortinadas.
Eu havia visto mapas da cidade, e sabia onde encontrar a casa da minha gente. Foi dito que eu
seria reconhecido e bem-vindo, pelas velhas tradições da aldeia; então me apressei pela Back
Street até a Cicle Court, e atravessei a neve fresca sobre toda a laje que pavimentava a cidade,
até onde a Green Lane levava aos fundos da Market House. Os velhos mapas ainda serviam
bem, e eu não tive nenhum problema; embora em Arkham, devem ter mentido quando
disseram que passavam bondes por ali, já que não vi um único fio no alto. A neve teria coberto
os trilhos, de qualquer modo. Estava satisfeito por ter preferido andar, pois a aldeia branca
tinha parecido muito bonita da colina; e agora eu estava ansioso em bater à porta da minha
gente, a sétima casa à esquerda na Green Lane, com um antigo telhado pontudo e segundo
andar ressaltado, tudo construído antes del650.
Havia luzes dentro da casa quando me dirigi a ela, e vi pelas janelas de grades cruzadas que
deveria estar muito próxima de seu estado antigo. A parte superior sobressaia à rua estreita e
coberta de grama e quase encontrava a parte que sobressaia da casa em frente, de forma que
me encontrava quase num túnel, com o degrau de pedra da porta totalmente coberto de neve.
Não havia calçada, mas muitas casas tinham portas altas que eram alcançadas por degraus
duplos com corrimãos de ferro. Era uma cena estranha, e como eu era um estranho à Nova
Inglaterra, nunca havia visto algo assim antes. Embora isso tenha me agradado, eu teria
saboreado melhor se houvesse pegadas na neve, pessoas nas ruas e algumas janelas fechadas
sem cortinas.
Quando sondei a antiga aldrava de ferro, fiquei com um pouco de medo. Algum temor havia se
acumulado em mim, talvez por causa da estranheza da minha herança, a falta de movimento e
o silêncio estranho da manhã naquela velha cidade de costumes bizarros. E quando minha
batida foi respondida, fiquei completamente amedrontado, porque não havia ouvido nenhum
passo antes da porta abrir com um rangido. Mas não fiquei com medo por muito tempo, pois o
homem idoso de pijama e chinelos na entrada tinha um rosto brando que me tranqüilizou; e
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apesar de ter feito sinais de que era surdo, escreveu uma curiosa e antiga saudação com o
estilete e a tabuleta de cera que carregava.
Acenou para que o seguisse até uma sala baixa, iluminada por velas, com caibros expostos e
móveis escuros, rijos e esparsos, do século XVII. O passado estava vivo ali, nenhum atributo
tinha sido perdido. Havia uma lareira cavernosa e uma máquina de fiar próxima na qual uma
mulher idosa, usando um manto e uma touca comprida, sentava-se na minha direção, fiando
silenciosamente, apesar da época festiva. Um desalento indefinido parecia pairar sobre o lugar,
e eu estava bestificado pelo fogo não estar aceso. O quarto em frente às janelas cortinadas
parecia estar ocupado, embora eu não tivesse certeza. Eu não gostei de tudo o que vi, e senti o
temor novamente. Este temor ficou mais forte do que estava antes de ser abrandado. Quanto
mais olhava para o rosto brando do velho, mais a sua brandura excessiva me aterrorizava. Os
olhos nunca se moviam, e a pele assemelhava-se à cera. Finalmente fiquei convencido de que
não era realmente um rosto, mas uma habilidosa máscara demoníaca. Suas mãos fantásticas,
curiosamente enluvadas, escreveram na tabuleta com impressionante habilidade e me
disseram que eu deveria esperar um pouco para ser levado ao local da festividade.
Apontando uma cadeira, uma mesa e uma pilha de livros, o velho agora deixou a sala; e
quando me sentei para ler, vi que os livros estavam esbranquiçados e bolorentos, e que
incluíam o velho Maravilhas da Ciência, de Morryster, o terrível Saducismus Triumpharus, de
Joseph Glanvil, publicado em 1681, o chocante Daemonolarreia, de Remigius, impresso em
1681 em Lyons, e o pior de todos, o impronunciável Necronomicon, do árabe louco Abdul Al-
hazred, na tradução latina proibida de Olaus Wormius; um livro que eu nunca tinha visto, mas
do qual ouvira sussurrarem coisas monstruosas. Ninguém falou comigo, mas eu podia ouvir o
bater das placas ao vento no lado de fora, e o zumbido da máquina de fiar enquanto a velha de
touca continuava silenciosamente a fiar e fiar. Achei a sala, os livros e as pessoas, muito
mórbidas e inquietantes, mas por causa de uma velha tradição de festividades estranhas que
meus pais tinham me intimado a seguir, resolvi esperar coisas esquisitas. Então tentei ler, e
logo comecei a tremer, absorvido por algo que descobri ser o malfadado Necronomicon, um
pensamento e uma lenda muito hedionda para sanidade ou consciência, mas eu me distraí
dele quando supus ouvir o fechar de uma das janelas que ficava em frente à lareira, como se
ela tivesse sido aberta furtivamente. Pareceu seguir-se um zumbido que não era da máquina
de fiar da velha. Não pude ouvir bem, no entanto, pois a velha estava fiando vigorosamente, e
o relógio antigo soara as horas. Depois disso, perdi a sensação de que haviam pessoas no local,
e estava lendo intensa e tremulante quando o velho voltou, calçado de botas e vestido numa
roupa folgada antiga, e sentou no mesmo banco, de forma que eu não podia vê-lo. Era
certamente uma espera nervosa, e o livro blasfemo nas minhas mãos a fazia duas vezes maior.
Quando soaram onze horas, entretanto, o velho se levantou, deslizou até uma arca maciça
esculpida que estava a um canto, e pegou dois mantos encapuzados; um dos quais colocou, e
com o outro cobriu a velha, que tinha parado seu fiar monótono. Então os dois se dirigiram à
porta exterior; a mulher se arrastou, coxeando, e o velho, depois de pegar o mesmo livro que
eu estava lendo, acenou para mim enquanto colocava o capuz sobre o rosto imóvel ou
máscara.
Saímos para as ruas tortuosas e escuras daquela cidade incrivelmente antiga; saímos enquanto
as luzes nas janelas cortinadas desapareciam uma a uma, e a estrela do Cão espreitava a turba
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de figuras cobertas e encapuzadas que safam silenciosamente de cada porta e formavam uma
procissão monstruosa rua acima, passando pelas placas ruidosas, pelos frontões
antediluvianos, pelos telhados emaranhados e pelas janelas de grades cruzadas; atravessando
ruas precipituosas, onde casas decadentes cobriam-se e desagregavam-se, deslizando por
pátios abertos e cemitérios de igrejas, onde postes de luz faziam as constelações parecerem
medonhamente bêbadas.
Em meio à multidão, segui meus dois guias silenciosos; empurrado por cotovelos que pareciam
extraordinariamente macios, e pressionado por peitos e estômagos que pareciam
anormalmente felpudos; mas sem nunca ver um rosto e nunca ouvir uma palavra. Em frente,
as colunas sinistras se arrastavam, e eu vi que todos os peregrinos convergiam a uma espécie
de povo de becos loucos no topo de uma colina alta no centro da cidade, onde se elevava uma
grande igreja branca. Eu a tinha visto do alto da estrada quando olhei a noite caindo em
Kingsport, e ela me tinha feito tremer, porque Aldebara havia parecido balançar-se por um
momento na torre fantasmagórica.
Havia um espaço aberto ao redor da igreja; uma parte era um cemitério com lápides espectrais,
e a outra era uma quadra semipavimentada, que tinha sido praticamente toda varrida da neve
pelo vento, e enfileirada com casas antigas e mal-conservadas, com telhados pontudos e
frontões protuberantes. Fogos-fátuos dançavam sobre as tumbas, revelando alamedas
repugnantes, embora estranhamente não fizessem sombra. Depois do cemitério, onde não
havia casas, podia ver acima do cume da colina e observar o cintilar das estrelas no porto, pois
a cidade era invisível no escuro. Vez por outra, uma lanterna meneava horrivelmente através
de becos tortuosos, em seu caminho para juntar-se à turba, que agora estava entrando furtiva
e silenciosamente na igreja. Eu esperei até que a multidão houvesse penetrado pela porta
negra, e até que todos os que ali se acotovelavam os tivessem seguido. O velho estava
puxando minha manga, mas eu estava determinado a ser o último. Atravessando a soleira em
direção ao templo de escuridão desconhecida e cheio como uma colméia, virei-me uma vez
para olhar o mundo exterior, onde uma fosforescência no cemitério fazia um brilho doentio no
pavimento da colina, e ao fazer isso, estremeci. Pois embora o vento não houvesse deixado
muita neve, tinham sobrado umas poucas porções no terreno perto da porta; e naquela
olhada para trás, pareceu aos meus olhos confusos que não havia nenhuma marca de pegadas,
nem mesmo as minhas.
A igreja estava escassamente iluminada por todas as lanternas que haviam sido trazidas pelos
fiéis, e a maior parte da turba já havia desaparecido. Eles tinham afluído para a nave entre os
bancos altos e as portas sem retorno das criptas, que se abriram repulsiva e largamente, logo
depois do púlpito, e estavam agora se contorcendo ruidosamente. Eu segui, calado, os degraus
gastos até a cripta escura e sufocante. O séquito daquela fila silenciosa em marcha noturna me
parecia muito horrível, e eu os vi movendo-se sinuosamente ao interior de uma tumba de
veneração que parecia mais horrível ainda. Então notei que o chão da tumba tinha uma fresta
na qual a multidão se esgueirava, e em um momento, todos nós estávamos descendo uma
escadaria agourenta de pedra bruta cortada; uma escadaria em espiral estreita, úmida e
peculiarmente perfumada, que perfurava interminavelmente em direção às entranhas da
colina, passando por paredes monótonas de blocos de pedras gotejantes e argamassa
esmigalhada. Foi uma descida traumatizante e silenciosa, e depois de um intervalo horrível,
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percebi que as paredes e degraus estavam mudando sua natureza, como se fossem cinzeladas
da rocha sólida. O que me perturbou principalmente foi que as miríades de passos não faziam
sons e não produziam ecos. Depois de uma descida que parecia durar eras, vi algumas
passagens laterais ou covas, que conduziam de recantos desconhecidos de escuridão a esta
trilha de mistério noturno. Logo elas ficaram excessivamente numerosas, como catacumbas
ímpias de ameaças inomináveis; e seu odor pungente de decadência aumentava quase
insuportavelmente. Eu sabia que nós devíamos ter atravessado a montanha e estávamos agora
abaixo da própria Kingsport, e eu estremeci ao pensar que uma cidade poderia ser tão velha e
possuir subterrâneos tão diabólicos.
Então vi o bruxulear lívido de uma luz pálida, e ouvi o marulho insidioso de águas escuras.
Novamente estremeci, porque eu não havia gostado das coisas que a noite tinha trazido, e
desejava amargamente que nenhum antepassado tivesse me obrigado a este rito primitivo. À
medida que os degraus e a passagem ficavam mais largos, eu ouvi outro som, o lamento agudo
de uma flauta débil; e de repente surgiu na minha frente a paisagem ampla de um mundo
interior: uma costa fungosa e vasta, iluminada por uma coluna que vomitava uma doentia
chama esverdeada, e banhada por um largo rio oleoso que fluía dos abismos assustadores e
desconhecidos para se juntar à baía negra do oceano antiqüíssimo.
Ofegando, à beira de desmaiar, olhei para o jardim profano de imensos cogumelos, fogo
leproso e água viscosa, e vi a turba encapada formando um semicírculo ao redor do pilar em
chamas Era o rito do Yule, mais antigo do que o Homem, e fadado a sobreviver a ele; o rito
primitivo do solstício e a promessa de primavera após a neve; o rito do fogo e das plantações,
luz e música. E nas grutas estígias, eu os vi fazer o rito, adorar o pilar doentio de chamas, e
atirar na água punhados da vegetação que reluziam verdes ao brilho clórico. Vi isso e algo
agachado amorficamente, distante da luz, tocando ruidosamente uma flauta; e enquanto a
coisa tocava, pensei ouvir sibilos nocivos e abafados na escuridão inimiga onde eu não podia
ver. Mas o que mais me aterrorizou foi a coluna de chamas; brotando vulcanicamente das
profundezas inconcebíveis, sem produzir nenhuma sombra, como uma chama deveria fazer, e
agasalhando a rocha nitrosa com um azinhavre sórdido e venenoso. Toda aquela combustão
fervente não fazia nenhum calor, mas apenas umidade de morte e decomposição.
O homem que tinha me trazido agora até um ponto diretamente ao lado da chama odienta,
fez passes cerimoniais rígidos para o semicírculo, à sua frente. Em certos estágios do ritual,
faziam reverências em que tinham de se agachar, especialmente quando ele segurou acima de
sua cabeça aquele detestável Necronomicon que trouxera consigo; e eu compartilhei todas as
reverências, porque eu tinha sido convocado a este festival pelos escritos de meus ancestrais.
Então o velho fez um sinal ao flautista semi-oculto nas trevas, cujo toque logo mudou de um
zumbido fraco para um zumbido escasso mais alto em outra escala; precipitando um horror
inimaginável e inesperado. Com tal horror, quase afundei na terra coberta de liquens,
trespassado por um temor que não pertencia a este ou a nenhum outro mundo, mas apenas
aos espaços enlouquecedores entre as estrelas.
Vindas da inimaginável escuridão além do fulgor gangrenoso da chama fria, das léguas
tartáricas pelas quais o rio oleoso corria sobrenatural, oculta e obscuramente surgiu uma
horda de seres alados e híbridos domesticados, que nenhum olho são jamais poderia captar ou
39
nenhum cérebro normal jamais poderia recordar, batendo ritmicamente suas asas. Eles não
eram propriamente nem toupeiras, nem abutres, nem formigas, nem morcegos vampiros, nem
seres humanos decompostos, mas alguma coisa que eu não posso e não devo recordar. Eles
sacudiam um pouco seus pés cobertos de teias e um pouco suas asas membranosas; e quando
alcançaram a turba de celebrantes, as figuras cobertas as pegaram e montaram, e saíram, uma
a uma, cavalgando ao longo da extensão daquele rio mal-iluminado, em direção a poços e
galerias de pânico onde nascentes venenosas mantinham cataratas ocultas.
A velha fiandeira tinha ido com a turba, e o velho só ficara porque eu tinha recusado quando
ele tentou me motivar a pegar um animal e cavalgá-lo como o resto. Eu vi, quando cambaleei
sobre meus pés, que o flautista amorfo havia desaparecido, mas aqueles dois monstros
estavam esperando pacientemente. Quando recuperei o equilíbrio, o velho tirou seu estilete e
a tabuleta e escreveu que ele era o representante dos meus ancestrais que tinham fundado o
culto do Yale neste local antigo; que tinha sido decretado que eu voltaria, e que os mistérios
mais secretos ainda estavam para ser apresentados. Ele escreveu isso com mão muito velha, e
como eu ainda hesitava, puxou de sua túnica folgada um anel e um relógio, ambos com os
símbolos da minha família, para provar que ele era o que dizia ser. Mas era uma prova
revoltante, porque eu sabia por papéis velhos, que o relógio tinha sido enterrado com meu
tatatataravo em 1698.
Em seguida, o velho tirou o capuz e apontou para a semelhança da família em seu rosto, mas
eu apenas estremeci, porque estava certo de que aquele rosto era apenas uma máscara
demoníaca. Os animais alados estavam agora arranhando impacientemente os liquens, e eu vi
que o velho estava ele mesmo quase impaciente. Quando uma das coisas começou a se mexer
para ir embora, ele se virou rapidamente para detê-la; então seu movimento repentino
desalojou a máscara de cera de que outrora deve ter sido sua cabeça. E então, porque aquela
posição de pesadelo me barrava à escada de pedra de onde tínhamos vindo, eu me joguei no
rio oleoso que borbulhava de algum lugar das cavernas até o mar; me joguei naquele suco
putrefato dos horrores do interior da Terra, antes que a loucura de meus gritos trouxesse toda
aquela legião mortuária que esses abismos pestilentos ocultavam.
No hospital, disseram-me que eu havia sido encontrado semicongelado no porto de Kingsport
ao alvorecer, agarrado ao tronco flutuante que o acaso mandou para me salvar. Eles me
disseram que eu tinha pego a bifurcação errada na estrada da colina na noite anterior e caído
dos penhascos no Ponto Laranja; uma coisa que deduziram das pegadas encontradas na neve.
Não havia nada que eu pudesse dizer, porque tudo estava errado. Tudo estava errado, com as
janelas largas mostrando um mar de telhados nos quais apenas um em cinco era antigo, e o
som de bondes e motores nas ruas abaixo. Eles insistiram que esta era Kingsport, e eu não
podia negar. Quando fiquei delirante ao ouvir que o hospital ficava perto do velho cemitério
da igreja na colina central, eles me mandaram ao Hospital Santa Maria, em Arkham, onde eu
poderia ser mais bem tratado. Gostei de lá, pois os médicos tinham mentes abertas, e até me
emprestaram sua influência para obter a cópia cuidadosamente guardada de contestáveis
Necronomicon de Al-hazred, da biblioteca da Universidade de Miskatonic. Eles disseram
alguma coisa sobre uma “psicose”, e concordei que eu deveria tirar todas as obsessões
mórbidas de minha mente.
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Lendo o hediondo capítulo, estremeci duplamente porque não era realmente novo para mim.
Eu o tinha visto antes, deixe as pegadas dizerem o que eles quiserem; e seria melhor esquecer
onde eu o tinha visto. Não havia ninguém – nas horas diurnas – que poderia me lembrar disso;
mas meus sonhos eram cheios de terror, devido às frases que não devo citar. Ouso citar
apenas um parágrafo, traduzido em nossa língua como posso, do estranho Baixo Latim.
As cavernas mais inferiores, escreveu o árabe louco, não são para a compreensão dos olhos
que vêem; pois suas maravilhas são estranhas e terríveis. Amaldiçoado o chão onde
pensamentos mortos.
O Horror de Dunwich
Górgonas, Hidras e Quimeras - horrendas histórias de Celainó e das Hárpias - podem-se
reproduzir no âmago das superstições - mas já estavam lá antes. São transcrições, tipos - os
arquétipos estão dentro de nós, eternos. Do contrário, como poderia afetar-nos a narração
daquilo que sabemos ser falso quando lúcidos? Será que naturalmente concebemos o terror a
partir de tais objetos, considerados em sua capacidade de nos causar danos físicos? Ora, não se
trata disso! Esses terrores são de tempos mais antigos. Datam do além-corpo - ou, sem o corpo,
teriam sido os mesmos… Que o tipo de medo aqui tratado é puramente espiritual - que é forte
em proporção a sua falta de objetivo na Terra, que predomina no período de nossa infância
inocente - são dificuldades cuja solução pode proporcionar alguma provável introvisão de
nossa condição ante-mundana e, pelo menos, um vislumbre da zona de sombras da pré-
existência.
CHARLES LAMB: Witches and other night-fears (Bruxas e outros temores-noturnos)
1
QUANDO ALGUÉM QUE viaja pelo centro-norte de Massachussets pega o caminho errado no
cruzamento da rodovia de Aylesbury logo após passar por Dean’s Corners, depara-se com uma
região isolada e curiosa. O relevo torna-se mais montanhoso e os paredões de pedras cobertos
por roseiras-bravas estreitam cada vez mais a estrada sinuosa e poeirenta. As árvores das
numerosas matas parecem grandes demais, e as ervas daninhas, as amoreiras silvestres e o
capim atingem uma exuberância raramente encontrada em regiões povoadas. Ao mesmo
tempo, há poucos e improdutivos campos cultivados e somente algumas casas esparsas, que
se revestem de um surpreendente aspecto uniforme de antigüidade, imundície e ruína. Sem
saber por que, hesitamos em pedir informações às enrugadas e solitárias figuras entrevistas,
uma vez ou outra, nas soleiras das portas caindo aos pedaços ou nas campinas em declive
cobertas de pedras. Essas figuras são tão silenciosas e furtivas que temos uma certa sensação
de estarmos confrontando-nos com coisas proibidas, com as quais seria melhor não termos a
menor ligação. Quando um aclive na estrada traz à vista as montanhas por sobre a mata densa,
aumenta a sensação de estranha inquietude. Os cumes são arredondados e simétricos demais
para suscitar conforto e naturalidade, e, às vezes, o céu delineia com especial clareza os
bizarros círculos de altos pilares de pedra com os quais a maioria deles é coroada.
Desfiladeiros e ravinas de uma profundidade extraordinária interceptam o caminho, e as
grosseiras pontes de madeira não inspiram muita segurança. Na próxima descida da estrada,
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há trechos pantanosos que, instintivamente, causam repulsa e até certo medo quando, ao
entardecer, chilram curiangos escondidos e os vaga-lumes surgem numa profusão anormal
para dançar ao ritmo insistente do coaxo roufenho, horripilante e estridente das rãs-touros-
gigantes. O curso estreito e brilhante das áreas mais altas do rio Miskatonic sugere uma
estranha semelhança com uma serpente ao enredar-se próximo às bases das colinas
arredondadas entre as quais nasce.
Conforme as colinas vão ficando mais próximas, prestamos mais atenção às suas encostas
arborizadas que aos topos coroados de pedras. Essas encostas assomam-se tão obscuras e
íngremes que desejaríamos que se mantivessem afastadas, mas não há outra estrada por onde
possamos evitá-las. Do outro lado de uma ponte coberta, vemos um pequeno povoado
comprimido entre o riacho e a ladeira vertical da Montanha Redonda e imaginamos que o
conjunto de apodrecidos telhados à holandesa revelam um período arquitetônico mais antigo
que o da região vizinha. Não é nada animador, observando mais atentamente, que a maioria
das casas estão abandonadas e caindo aos pedaços e que a igreja, com o campanário
quebrado, abriga agora o único e desmazelado estabelecimento comercial da aldeia.
Apavoramo-nos ao ter que passar pelo tenebroso túnel da ponte, contudo não há como evitá-
lo. Uma vez transposto, não é raro sentirmos um leve e maligno odor na rua do povoado, que
acumula o mofo e a decadência de séculos. É sempre um alívio sair desse lugar e seguir pela
estrada estreita que circunda a base das colinas e cruza a planície até se unir novamente à
rodovia de Aylesbury. Depois de algum tempo, às vezes nos damos conta de que passamos por
Dunwich.
Pessoas de fora visitam Dunwich com muito pouca freqüência, e, desde uma certa temporada
de horror, todas as placas que indicavam sua direção foram retiradas. O cenário, julgado por
qualquer cânon estético comum, excede em beleza, e, no entanto, não há afluência de artistas
nem de turistas de verão. Há dois séculos, quando ninguém ria ao se falar de bruxaria,
adoração de Satanás e presenças estranhas nas florestas, era de costume explicar a razão de
se estar evitando a localidade. Em nossa era racional -desde que o horror de Dunwich de 1928
foi silenciado por aqueles que se sensibilizaram pelo bem-estar da cidade e do mundo- as
pessoas afastam-se dela sem saber exatamente por quê. Talvez isso se deva ao fato – embora
não possa ser aplicado a estranhos desavisados – de que os habitantes locais estejam agora
numa fase de decadência repugnante e muito superior aquele nível de atraso tão comum nos
confins da Nova Inglaterra. Eles acabaram por formar uma raça própria, com características
mentais e físicas bem definidas de degeneração e endogamia. Sua inteligência média é
lamentavelmente baixa, ao mesmo tempo que seus anais exalam a podridão de uma
imoralidade patente e de assassinatos, incestos e atos de quase inominável violência e
perversidade mais ou menos encobertos. A velha aristocracia, representada pelas duas ou três
famílias nobres que vieram de Salem em 1692, mantiveram-se um pouco acima do nível geral
de decadência; embora muitos ramos misturaram-se tão profundamente à massa sórdida que
somente seus nomes permanecem como um indicativo da origem que desonram. Alguns dos
Whateley e Bishop ainda mandam seus filhos mais velhos para Harvard e Miskatonic, embora
estes raramente retornem aos arruinados telhados à holandesa sob os quais eles e seus
ancestrais nasceram.
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Ninguém, nem mesmo aqueles que conhecem os fatos relacionados ao recente horror, podem
dizer com clareza o que há de errado com Dunwich, embora velhas lendas falem de ritos
profanos e conclaves de índios, nos quais eram invocadas formas proibidas de sombra que
saíam das grandes colinas arredondadas, e eram feitas preces orgiásticas respondidas por altas
crepitações e estrondos provenientes do solo abaixo. Em 1747, o Reverendo Abijah Hoadley,
recém-chegado à Igreja Congregacional do Povoado de Dunwich, pregou um sermão
memorável sobre a presença próxima de Satanás e seus diabretes, no qual disse:
Não se pode negar que essas Blasfêmias de um infernal Cortejo de Demônios são assuntos de
Conhecimento muito comum para serem negadas; as vozes amaldiçoadas de Azazel e Buzrael,
de Belzebu e Belial que provêem do subsolo, foram ouvidas por mais de Vinte Testemunhas
confiáveis e que ainda estão vivas. Eu mesmo, menos de Duas Semanas atrás, ouvi um
Discurso muito claro de Forças malignas na Colina atrás da minha casa; onde havia uma
Algazarra e Agitação, uns Gemidos, Berros e Silvos, que nenhuma Coisa desta Terra poderia
provocar e que, com certeza, vinham daquelas Cavernas, que somente a Magia Negra pode
descobrir e somente o Diabo revelar.
O Sr. Hoadley desapareceu logo após proferir esse sermão, mas o texto, impresso em
Springfield, ainda existe. Ruídos nas colinas continuaram a ser relatados ano a ano e ainda
formam um quebra-cabeças para geólogos e fisiógrafos.
Outras tradições falam de fétidos odores perto dos círculos de pilares de pedras que coroam as
colinas e de presenças etéreas impetuosas, que são ouvidas debilmente a certas horas e em
pontos fixos na base das grandes ravinas, enquanto ainda outras tentam explicar o Campo do
Demo – uma encosta árida e amaldiçoada onde não cresce nenhuma árvore, arbusto ou capim.
Além disso, os habitantes locais têm um medo mortal dos numerosos curiangos que cantam
mais alto nas noites quentes. Juram que os pássaros são psicopompos à espera das almas dos
moribundos e que emitem seus gritos sinistros em uníssono com a respiração ofegante do
sofredor. Se conseguem agarrar a alma fugitiva quando deixa o corpo, eles rapidamente se
alvoroçam chilreando numa risada demoníaca, mas, se falham, caem pouco a pouco num
silêncio desapontado.
É claro que essas histórias são obsoletas e ridículas, pois são transmitidas desde tempos muito
antigos. Dunwich é, de fato, um povoado absurdamente velho – bem mais velho do que
qualquer uma das comunidades num raio de 50 quilômetros. Ao sul, podemos avistar as
paredes do porão e a chaminé da antiga casa dos Bishop, que foi construída antes de 1700, ao
passo que as ruínas do moinho da cachoeira, construído em 1806, constituem-se na peça
arquitetônica mais moderna visível. A indústria não floreceu em Dunwich, e o movimento
fabril do século XIX não resistiu muito tempo. Mais velhos de todos são as grandes
circunferências de colunas de pedra desbastadas dos topos das colinas, mas elas são mais
atribuídas aos índios que aos colonizadores. Depósitos de caveiras e ossos, encontrados dentro
desses círculos e ao redor da enorme pedra em forma de mesa na Colina Sentinela, sustentam
a crença popular de que tais locais já foram cemitérios dos Pocumtucks; ainda que muitos
etnólogos, menosprezando a absurda improbabilidade de tal teoria, persistem acreditando
tratar-se de restos caucásicos.
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Foi no distrito de Dunwich, numa grande e em parte desabitada sede de um sítio localizada na
encosta de uma colina a cerca de seis quilômetros e meio do povoado e dois quilômetros e
meio de qualquer outra residência, onde nasceu Wilbur Whateley, às 5 horas da manhã do
domingo, dia dois de fevereiro de 1913. Essa data era relembrada porque era o dia de Nossa
Senhora da Candelária, que os habitantes de Dunwich curiosamente celebram com outro
nome, e porque foram ouvidos os ruídos nas colinas e todos os cães das redondezas latiram
persistentemente durante toda a noite anterior. Menos digno de nota era o fato de que a mãe
fazia parte do ramo decadente dos Whateley, uma mulher albina de 35 anos um tanto
deformada e nada atraente, que morava com um pai idoso e meio louco de quem, em sua
juventude, correram rumores sobre as mais assustadoras histórias de bruxarias. Lavinia
Whateley não tinha marido conhecido, mas, de acordo com o costume da região, não fez
nenhuma tentativa de rejeitar a criança; no que diz respeito ao outro lado da linhagem, os
camponeses puderam especular, e assim o fizeram de todas as maneiras cabíveis. A mãe, pelo
contrário, parecia estranhamente orgulhosa dessa criança escura e semelhante a um bode,
que contrastava muito com seu doentio albinismo de olhos cor-de-rosa, e costumava sussurrar
muitas profecias curiosas sobre seus puderes incomuns e seu futuro brilhante.
Lavinia era bem capaz de mencionar tais coisas, já que era uma criatura solitária e dada a vagar
em meio a tempestades nas colinas, tentando ler os grandes livros malcheirosos que seu pai
herdara através de dois séculos de existência dos Whateley e que estavam-se desmantelando
com o tempo e com os buracos de traça. Nunca fora à escola, mas se alimentava de
fragmentos desconexos de sabedoria antiga que o Velho Whateley lhe havia ensinado. A
remota sede sempre fora temida devido à reputação do Velho Whateley de ser praticante de
magia negra, e a inexplicada morte violenta da Sra. Whateley, quando Lavinia tinha doze anos,
não havia ajudado a tornar o local popular. Isolada em meio a estranhas influências, Lavinia
apreciava os devaneios selvagens e grandiosos e as ocupações singulares; em seu tempo livre,
não se dedicava muito aos cuidados da casa, de onde todos os padrões de ordem e limpeza
haviam desaparecido há muito tempo.
Houve um grito horrível que ecoou até por sobre os ruídos das colinas e os latidos dos cães na
noite em que Wilbur nasceu, mas nenhum médico ou parteira conhecidos fizeram seu parto.
Os vizinhos não sabiam nada dele até uma semana depois, quando o Velho Whateley conduziu
seu trenó pela neve até o Povoado de Dunwich e disse umas palavras incoerentes para o
pessoal da venda do Osborn. Parecia haver uma mudança no velho – um novo elemento de
dissimulação em seu cérebro enevoado que subitamente o transformou de objeto em sujeito
do medo – embora não costumasse ser perturbado por nenhum acontecimento familiar
corriqueiro. Em meio a tudo isso, mostrou um certo orgulho, que pôde também ser notado em
sua filha posteriormente, e o que ele disse sobre a paternidade da criança foi lembrado anos
depois por muitos daqueles que o ouviram.
- Num quero sabê o que o povo fala; se o fio da Lavinny paricesse com o pai, não ia parecê com
nada conhecido. Oceis acha que só tem gente iguar que a gente daqui. A Lavinny já leu e viu
umas coisa que a maioria d’oceis só sabe falá. Eu acho que o home dela é dos mió qu’oceis
pode encontrá desse lado de Aylesbury; e se oceis conhecesse das montanha como eu, num ia
pedi mió casamento na igreja do que o dela. Vô falá uma coisa pr’oceis – um dia oceis vai ouvi
um fio da Lavinny chamá o nome do pai no ar to da Colina Sentinela!
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As únicas pessoas que viram Wilbur durante o primeiro mês de sua vida foram o velho
Zechariah Whateley, dos Whateley não decadentes, e Mamie Bishop, a companheira de Earl
Sawyer. A visita de Mamie foi mesmo por curiosidade, e as histórias contadas por ela depois
fizeram justiça a suas observações; mas foi então que Zechariah levou duas vacas leiteiras da
raça Alderney que o Velho Whateley havia comprado de seu filho Curtis. Isso marcou o
começo de uma seqüência de compras de gado da parte da família do pequeno Wilbur que só
terminou em 1928, ano em que se deu o horror de Dunwich; no entanto, o estábulo em ruínas
dos Whateley em nenhum momento pareceu estar superlotado de gado. Houve uma época
em que as pessoas ficaram curiosas a ponto de subir às escondidas para contar o rebanho, que
pastava precariamente na encosta íngreme acima da velha sede, mas nunca conseguiram
encontrar mais do que dez ou doze animais anêmicos e exangues. Era evidente que alguma
praga ou doença, talvez disseminada através da pastagem insalubre ou do madeiramento e
dos fungos contaminados do estábulo imundo, estava causando um alto índice de mortalidade
no gado do Whateley. Feridas ou chagas esquisitas, algo semelhantes a incisões, pareciam
afligir o gado que se encontrava à vista; e uma ou duas vezes, durante os primeiros meses de
vida do menino, alguns visitantes sugeriram ter reconhecido chagas similares nos pescoços do
velho grisalho barbado e de sua desleixada filha albina de cabelo crespo.
Na primavera após o nascimento de Wilbur, Lavinia retomou suas costumeiras perambulações
pelas colinas, carregando em seus braços desproporcionais a criança morena. O interesse
popular pelos Whateley diminuiu depois que a maioria dos camponeses já havia visto o bebê,
e ninguém se preocupou em comentar sobre o acelerado desenvolvimento que aquele recém-
nascido parecia exibir todos os dias. O crescimento de Wilbur era de fato impressionante, visto
que, num prazo de três meses de seu nascimento, havia atingido um tamanho e força
muscular incomuns para crianças com menos de um ano completo. Seus movimentos e até
mesmo seus sons vocais mostravam prudência e decisão muito peculiares para uma criança, e
ninguém estranhou quando, aos sete meses, começou a andar sem ajuda, com pequenos
tropeços que desapareceriam no próximo mês.
Pouco tempo depois – no Halloween – uma grande fogueira foi vista à meia-noite no cume da
Colina Sentinela, onde está a velha pedra em forma de mesa entre seu túmulo de ossos
antigos. Surgiram muitos comentários quando Silas Bishop – dos Bishop não decadentes –
mencionou ter visto o menino subindo correndo com muita rapidez a montanha à frente de
sua mãe cerca de uma hora antes de as chamas serem notadas. Silas estava arrebanhando
uma novilha desgarrada, mas quase esqueceu sua missão quando avistou, de relance, a
presença das duas figuras iluminadas parcialmente por sua lanterna. Elas dispararam a correr
pelo mato rasteiro quase sem fazer barulho, e o pasmado observador parecia acreditar que
estavam inteiramente nuas. Mais tarde, já não podia ter certeza com respeito ao menino, que
poderia estar vestido com um tipo de cinto de franjas e com uma bermuda ou calças escuras.
Wilbur nunca mais foi visto, vivo e consciente, sem um traje completo e muito bem abotoado,
pois o desalinho ou iminente desalinho deste sempre parecia enfurecê-lo e alarmá-lo. Seu
contraste com a esquálida mãe e o avô a este respeito era um fato muito observado até que o
horror de 1928 sugeriu a mais válida das razões.
No mês de janeiro seguinte, houve apenas alguns boatos sobre o fato de que “o moleque
negro da Lavinny” havia começado a falar com somente onze meses. Seu modo de falar era
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algo notável tanto por ser diferente do sotaque comum à região quanto por não apresentar
aquele balbucio infantil de que muitas crianças de três ou quatro anos podem muito bem se
orgulhar. O menino não era falador, entretanto, quando falava, parecia expressar algum
elemento indefinível e totalmente alheio a Dunwich e seus habitantes. A estranheza não
estava no que ele dizia, ou nas simples expressões que ele usava, mas parecia vagamente
ligada a sua entonação ou aos órgãos internos que produziam os sons pronunciados. Também
seu aspecto facial era notável pela maturidade; embora apresentasse a mesma ausência de
queixo da mãe e do avô, seu nariz firme e precocemente modelado, aliado à expressão dos
grandes, escuros e quase latinos olhos, davam-lhe um certo ar adulto e uma inteligência fora
do comum. Era, contudo, extremamente feio apesar de sua aparência brilhante; havia algo
quase caprino ou animalesco em seus lábios grossos, na pele amarelada e de poros grandes,
nos cabelos crespos e grossos e nas orelhas estranhamente alongadas. Logo, tornou-se
decididamente ainda menos apreciado do que sua mãe e seu avô, e todas as suposições sobre
ele eram pinceladas com referências à antiga magia do Velho Whateley e a como as colinas
certa vez tremeram quando ele gritou o terrível nome de Yog-Sothoth no meio de um círculo
de pedras segurando um enorme livro aberto a sua frente. Os cães detestavam o menino, e ele
era sempre obrigado a tomar várias medidas defensivas contra seus latidos ameaçadores.
Nesse ínterim, o Velho Whateley continuou a comprar gado sem que se percebesse qualquer
aumento em seu rebanho. Ele também cortou madeira e começou a consertar as partes sem
uso de sua casa – uma construção espaçosa, de telhado pontiagudo, cuja parte de trás estava
inteiramente encravada na ladeira rochosa da colina, e cujos três cômodos térreos menos
arruinados haviam sempre sido suficientes para ele e sua filha. O velho devia ainda ser muito
forte para conseguir realizar tanto trabalho pesado; e, embora ainda balbuciasse coisas de
modo demente algumas vezes, sua carpintaria parecia demonstrar resultados de cálculos
precisos. Ele começou as obras assim que Wilbur nasceu, pondo logo um dos muitos barracões
de ferramentas em ordem, revestindo-o com ripas e equipando-o com uma fechadura nova e
resistente. No que se refere à reforma da abandonada parte de cima da casa, foi um artífice
não menos cuidadoso. Sua obsessão mostrava-se somente em seu preciso fechamento com
madeira de todas as janelas da parte em reparos – embora muitos declarassem que era uma
loucura incomodar-se com a reforma em geral. Menos inexplicáveis foram as instalações de
outro quarto térreo para seu novo neto – um quarto que diversos visitantes viram, embora
ninguém nunca fosse admitido na completamente fechada parte de cima. Nesse aposento, ele
colocou estantes altas e firmes, nas quais começou a organizar, numa ordem aparentemente
cuidadosa, todos os carcomidos livros antigos e partes de livros que até então ficavam
amontoados desordenadamente pelos cantos dos vários cômodos.
- Eu usei um pouco eles – disse ao tentar remendar uma página rasgada, escrita em letra gótica,
com cola preparada no enferrujado fogão da cozinha – mais o menino é que vai usá eles mais.
É mió ele guardá eles direitim porque eles vai sê útir pr’ele aprendê.
Quando Wilbur tinha um ano e sete meses – em setembro de 1914 – seu tamanho e
habilidades eram quase alarmantes. Tinha a estatura de uma criança de quatro anos e falava
de modo fluente e com uma inteligência incrível. Corria livremente pelos campos e colinas e
acompanhava sua mãe em todas as suas perambulações. Em casa, estudava cuidadosamente
as esquisitas figuras e gráficos dos livros de seu avô, enquanto o Velho Whateley instruía-o e
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catequisava-o por longas e silenciosas tardes. Nessa época, a reforma da casa havia terminado,
e aqueles que a observavam ficavam imaginando por que uma das janelas superiores havia
sido transformada numa sólida porta de madeira. Era uma janela na parte de trás da empena
do lado leste, encostada na colina; e ninguém podia imaginar por que uma rampa de madeira
foi construída desde o chão e presa nela. Por volta do período de término dessa obra, as
pessoas notaram que a velha casa das ferramentas, hermeticamente fechada e com as janelas
revestidas por ripas de madeira desde o nascimento de Wilbur, havia sido abandonada de
novo. A porta ficava descuidadamente aberta e, assim que Earl Sawyer entrou ali depois de
uma visita para a venda de gado ao Velho Whateley, ficou um tanto perturbado com o odor
singular com o qual se deparou – esse mau cheiro, afirmou, que ele nunca havia sentido antes
em toda a sua vida, exceto perto dos círculos indígenas nas colinas, e que não poderia provir
de nada são ou desta Terra. Mas até aí, os lares e barracões do povo de Dunwich nunca foram
notáveis pela imaculabilidade olfativa.
Nos meses seguintes, não houve nenhum acontecimento digno de nota, com exceção de que
todos constataram um lento mas constante aumento nos misteriosos ruídos nas colinas. Na
Véspera de Maio de 1915, houve tremores que até mesmo os moradores de Aylesbury
sentiram, enquanto que o Halloween daquele ano produziu um estrondo no subsolo,
sincronizado, de forma bizarra, com rajadas de chamas – “é as bruxaria dos Whateley” –
provenientes do cume da Colina Sentinela. O modo como Wilbur crescia era tão estranho que
parecia um menino de dez anos quando acabara de completar três. Lia sozinho e sem
nenhuma dificuldade; mas falava muito menos que antes. Uma taciturnidade profunda estava
absorvendo-o, e, pela primeira vez, as pessoas começaram a falar especificamente de um certo
semblante de maldade em seu rosto caprino. Às vezes, balbuciava em uma linguagem
desconhecida e cantava em ritmos bizarros que assustavam o ouvinte, provocando-lhe uma
sensação de inexplicável terror. A aversão dos cães por ele tornara-se então assunto para
extensos comentários, e ele era obrigado a carregar uma pistola para atravessar o campo em
segurança. Os usos ocasionais da arma não aumentaram sua popularidade entre os donos de
cães de guarda.
Os poucos que visitavam a casa encontravam Lavinia freqüentemente sozinha no térreo,
enquanto gritos estranhos e passos ressoavam na lacrada parte de cima. Ela nunca contava o
que seu pai e o menino faziam lá em cima, embora uma vez tenha empalidecido e ficado muito
apavorada quando um vendedor de peixe brincalhão tentou abrir a porta trancada que dava
para a escada. Aquele mascate contou ao pessoal da venda no Povoado de Dunwich que
pensou ter ouvido pisadas de cavalo naquele piso de cima. Eles refletiram, pensando na porta,
na rampa e no gado que desapareceu tão repentinamente, estremecendo ao se lembrar das
histórias de quando Whateley era jovem e das estranhas coisas que são chamadas para fora da
Terra quando um novilho é sacrificado no momento oportuno para certos deuses pagãos.
Durante um determinado tempo, notou-se que os cães haviam começado a detestar e temer
toda a propriedade dos Whateley tão violentamente quanto detestavam e temiam o jovem
Wilbur em pessoa.
Em 1917 chegou a guerra, e o grande proprietário de terras Sawyer Whateley, na condição de
presidente da junta de recrutamento local, havia tido muito trabalho para encontrar uma
quota de jovens de Dunwich aptos até mesmo para serem mandados para o serviço militar. O
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governo, alarmado com tais sinais de uma decadência regional completa, enviou vários oficiais
e peritos médicos para investigar, conduzindo uma pesquisa que os leitores dos jornais da
Nova Inglaterra ainda recordam. Foi a publicidade dedicada a essa investigação que colocou
repórteres no rastro dos Whateley e causou a publicação, no Boston Globe e Arkham
Advertiser, de histórias dominicais sensacionalistas sobre a precocidade do jovem Wilbur, a
magia negra do Velho Whateley, as estantes de livros antigos, o lacrado segundo piso da antiga
sede e a singularidade de toda a região com seus ruídos nas colinas. Wilbur tinha quatro anos
e meio então e parecia um rapaz de quinze. Seus lábios e bochechas estavam completamente
cobertos com pelos ásperos e escuros e sua voz havia começado a mudar.
Earl Sawyer foi para a propriedade dos Whateley com o grupo de repórteres e fotógrafos e
chamou sua atenção para o estranho mau cheiro que parecia provir da parte de cima lacrada.
Ele afirmou que era exatamente igual a um cheiro que sentira no barracão de ferramentas
abandonado quando a reforma havia finalmente terminado e semelhante aos leves odores
que, às vezes, parecia sentir perto do círculo de pedras nas montanhas. O povo de Dunwich leu
as histórias quando foram publicadas e riu dos erros óbvios. Tentavam imaginar, também, por
que os escritores atinham-se tanto ao fato de que o Velho Whateley sempre pagava pelo gado
com antiqüíssimas moedas de ouro. Os Whateley haviam recebido seus visitantes com uma
aversão mal disfarçada, embora não tivessem ousado oferecer nenhuma forte resistência ou
se recusado a falar, para evitar que se desse maior publicidade ao caso.
Durante uma década, os anais dos Whateley inseriram-se indistintamente na vida cotidiana de
uma mórbida comunidade acostumada a seus estranhos modos, que eram fortalecidos com as
orgias da Véspera de Maio e da Véspera de Todos os Santos. Duas vezes por ano, eles faziam
fogueiras no cume da Colina Sentinela; nesses momentos, os estrondos das montanhas
ressurgiam com uma violência cada vez maior, ao passo que, durante todo o ano, eram
realizados atos estranhos e pressagiosos no solitário casarão. Com o tempo, os visitantes
afirmaram ouvir sons na lacrada parte de cima mesmo quando toda a família estava embaixo,
e eles ficaram imaginando o quão rápido ou demorado era, geralmente, o sacrifício de uma
vaca ou novilha. Falou-se em dar queixa à Sociedade Protetora dos Animais, mas nunca nada
foi feito, já que o povo de Dunwich não demonstra a menor vontade de chamar a atenção do
mundo exterior para si.
Por volta de 1923, quando Wilbur era um menino de dez anos cuja mentalidade, voz, estatura
e rosto barbado davam-lhe todas as impressões de maturidade, uma segunda grande febre de
carpintaria começou na velha casa. As obras foram realizadas somente na parte de cima, e,
pelos pedaços de madeira jogados, as pessoas concluíram que o jovem e seu avô haviam
arrancado todas as repartições e até removido o sótão, deixando apenas um espaço vazio e
aberto entre o térreo e o telhado pontiagudo. Haviam derrubado, também, a grande chaminé
central e adaptado ao enferrujado fogão uma frágil chaminé de latão externa.
Na primavera após esse acontecimento, o Velho Whateley notou o número crescente de
curiangos que saíam do Vale da Fonte Fria para gorjear embaixo de sua janela à noite. Parecia
considerar essa circunstância como de grande importância e disse ao pessoal da venda do
Osborn que achava que sua hora quase havia chegado.
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- Eles pia bem juntim com a minha respiração agora – disse – e acho que eles tão se arrumano
pra pegá meu esprito. Eles sabe que ele tá saíno e num qué perdê ele. Oceis vai sabê, gente,
dispois que eu morrê se eles me pegô ô não. Se pegá, eles vai ficá cantano e rino até o dia
nascê. Se num pegá, eles vai ficá bem quetim. Espero que eles e os esprito que eles caça tem
umas briga danada de boa argum dia.
Na noite de 1° de agosto, comemoração da festa da colheita, de 1924, o Dr. Houghton de
Aylesbury foi chamado com urgência por Wilbur Whateley, que galopou a toda pressa com seu
último cavalo através da escuridão para telefonar da venda do Osborn no povoado. Ele
encontrou o Velho Whateley em estado muito grave, com o coração acelerado e a respiração
ofegante que indicavam um final bem próximo. A disforme filha albina e o neto com aquela
barba esquisita puseram-se ao lado da cama, enquanto do abismo vazio acima vinha um
inquietante som semelhante ao rítmico balanço ou marulho das ondas em alguma praia de
águas calmas. O médico, contudo, estava mais incomodado com o chilrar dos pássaros
noturnos do lado de fora; uma legião aparentemente ilimitada de curiangos que gritava sua
mensagem infinita em repetições diabolicamente sincronizadas com a respiração entrecortada
do moribundo. Era por demais incomum e anormal, pensou o Dr. Houghton, como toda aquela
região que ele havia adentrado tão relutantemente em resposta ao urgente chamado.
Por volta da uma hora, o Velho Whateley recobrou a consciência e interrompeu sua respiração
ofegante para balbuciar algumas palavras a seu neto.
-Mais espaço, Willy, mais espaço logo. Ocê cresce, mais ele cresce mais ligero. Vai tá pronto
para servi ocê logo, menino. Abre os portão pra Yog-Soloth com aquela reza comprida que ocê
vai encontrá na página 751 da edição compreta, e intão bota fogo na prisão. Fogo nenhum da
Terra pode queimá ele.
Ele estava claramente alucinado. Depois de uma pausa, durante a qual o bando de curiangos lá
fora sincronizou seus gritos com o andamento alterado da respiração do velho, ao mesmo
tempo que alguns indícios dos estranhos ruídos nas colinas vieram de bem longe, ele
pronunciou mais uma ou duas frases.
- Dá comida pr’ele sempre, Willy, e óia o tanto; mais não deixa ele crescê muito ligero pro
lugá, porque se ele rebentá o lugá dele e saí antes d’ocê abri pro Yog-Sothoth, tá tudo acabado
e
num vai servi pra nada. Só eles lá de longe pode fazê ele se murtiplicá e trabaiá. … Só eles, os
antigo que qué vortá. . . .
Mas as palavras deram lugar às palpitações de novo, e Lavinia gritou ao perceber a maneira
como os curiangos acompanhavam a mudança. Por mais de uma hora nada mudou; então,
finalmente, ouviu-se o último estertor do moribundo. O Dr. Houghton cobriu os vitrificados
olhos cinzas com as pálpebras enrugadas ao mesmo tempo que o tumulto de pássaros
silenciava-se imperceptivelmente. Lavinia soluçou, mas Wilbur somente se regojizou ao
mesmo tempo que os ruídos nas colinas retumbavam debilmente.
- Eles não pegaro ele – murmurou com sua voz grossa e grave.
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Nessa época, Wilbur era um estudioso de uma erudição espantosa em seu modo unilateral, e
muitos bibliotecários de lugares distantes, onde são guardados livros raros e proibidos de
tempos remotos, começavam a conhecê-lo por correspondência. Era cada vez mais odiado e
temido na região de Dunwich devido a certos desaparecimentos de jovens que as suspeitas
levavam vagamente a sua porta; mas conseguia sempre silenciar as investigações através de
intimidações ou lançando mão daquele estoque de ouro antigo que, assim como no tempo de
seu pai, ainda era gasto de modo regular e crescente para a compra de gado. Aparentava estar
extremamente maduro agora e sua estatura, tendo alcançado o limite normal dos adultos,
parecia sujeita a aumentar ainda mais. Em 1925, quando recebeu a visita de um estudioso e
correspondente da Universidade de Miskatonic que partiu pálido e confuso, elejá havia
alcançado mais de dois metros de altura.
Durante todos esses anos, Wilbur vinha tratando sua semi-deformada mãe albina com um
desprezo crescente, chegando a proibi-la de ir às colinas com ele na Véspera de Maio e em
Todos os Santos; e, em 1926, a pobre criatura queixou-se a Mamie Bishop de estar com medo
dele.
- Tem mais coisa dele que eu sei do que eu posso contá pr’ocê, Mamie – ela disse – e hoje
em dia tem mais inda do que eu mema sei. Juro por Deus, num sei que é que ele qué nem que
é que tá tentano fazê.
Naquele Hallowen, os ruídos nas colinas soaram ainda mais alto, e o fogo queimou na Colina
Sentinela como de costume; mas as pessoas prestaram mais atenção aos gritos rítmicos de
vastos bandos de curiangos, incomumente atrasados, que pareciam estar reunidos perto da
não-iluminada casa dos Whateley. Após a meia-noite, suas notas estridentes irrromperam num
tipo de gargalhada pandemoníaca que cobriu toda a região, e eles não se calaram até o nascer
do sol. Então, eles desapareceram rapidamente em direção sul, pois já estavam atrasados em
um mês completo. O que isso significava, ninguém pôde ter muita certeza até algum tempo
depois. Parecia que nenhum dos habitantes da região havia morrido, mas a pobre Lavinia
Whateley, a albina deformada, nunca mais foi vista.
No verão de 1927, Wilbur consertou dois barracões do terreiro e começou a transportar seus
livros e pertences para lá. Logo depois, Earl Sawyer contou ao pessoal da venda do Osborn que
mais obras de carpintaria estavam sendo realizadas na casa dos Whateley. Wilbur estava
fechando todas as portas e janelas do térreo e parecia estar retirando as repartições, tal como
ele e seu avô haviam feito há quatro anos. Estava vivendo num dos barracões, e Sawyer
achava que ele parecia mais preocupado e trêmulo do que o normal. Em geral, as pessoas
suspeitavam que ele soubesse alguma coisa sobre o desaparecimento de sua mãe, e muito
poucas ousavam aproximar-se dos arredores de sua propriedade agora. Sua altura aumentara
para cerca de dois metros e quinze centímetros, e nada indicava que esse desenvolvimento
fosse parar.
O inverno seguinte trouxe um acontecimento não menos estranho do que a primeira viagem
de Wilbur para fora da região de Dunwich. Correspondências trocadas com a Bilioteca Widener
em Harvard, a Biblioteca Nacional em Paris, o Museu Britânico, a Universidade de Buenos Aires
e a Biblioteca da Universidade de Miskatonic em Arkham não tornaram possível o empréstimo
de um livro que ele queria desesperadamente; assim, ao final, ele partiu em pessoa,
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maltrapilho, sujo, barbado e com seu dialeto impolido para consultar a cópia na biblioteca de
Miskatonic, que era a mais próxima a ele geograficamente. Com quase dois metros e meio de
altura, e carregando uma maleta barata e recém-comprada na venda do Osborn, essa gárgula
escura e caprina apareceu um dia em Arkham à procura do temido volume mantido a sete
chaves na biblioteca da faculdade – o terrível Necronomicon do árabe louco Abdul Alhazred na
versão latina de Olaus Wormius, impresso na Espanha no século dezessete. Ele nunca vira uma
cidade antes, mas não pensava em outra coisa a não ser encontrar seu caminho para o câmpus
universitário; onde, de fato, passou imprudentemente pelo enorme cão-de-guarda de dentes
brancos que latiu com fúria e inimizade incomuns enquanto puxava violentamente a rígida
corrente que o prendia.
Wilbur estava com a inestimável mas imperfeita cópia da versão inglesa do Dr. Dee que seu
avô havia-lhe deixado de herança e, ao ter acesso à cópia latina, começou a cotejar os dois
textos com o objetivo de descobrir uma certa passagem que estaria na página 751 de seu
volume defeituoso. Por mais que tentasse, não poderia deixar de dizê-lo, de maneira educada,
ao bibliotecário – o mesmo erudito Henry Armitage (mestre pela Miskatonic, doutor pela
Princeton e pela Johns Hopkins) que uma vez havia passado pela fazenda e que agora,
polidamente, importunava-o com perguntas. Ele estava procurando, tinha que admitir, por um
tipo de fórmula ou encantamento contendo o temível nome Yog-Sothoth, mas as discrepâncias,
repetições e ambigüidades confundiam-no, tornando a tarefa muito complicada. Ao copiar a
fórmular que ele finalmente escolheu, o Dr. Armitage olhou involuntariamente por cima de
seus ombros para as páginas abertas; a da esquerda, na versão latina, continha ameaças
monstruosas à paz e sanidade do mundo.
Também não é para se pensar (dizia o texto, que Armitage ia traduzindo mentalmente) que o
homem é o mais velho ou o último dos mestres da Terra, nem que a massa comum de vida e
substância caminha sozinha. Os Antigos foram, os Antigos são e os Antigos serão. Não nos
espaços que conhecemos, mas entre eles. Caminham serenos e primitivos, sem dimensões e
invisíveis para nós. Yog-Sothoth conhece o portal. Yog-Sothoth é o portal. Yog-Sothoth é a
chave e o guardião do portal. Passado, presente e futuro, todos são um em Yog-Sothoth. Ele
sabe por onde os Antigos entraram outrora e por onde Eles entrarão de novo. Ele sabe por
quais campos da Terra Eles pisaram, onde Eles ainda pisam e por que ninguém pode vê-los
quando pisam. Por seu cheiro, os homens podem saber que estão próximos, mas niguém
conhece seu aspecto exterior, a não ser pelos traços daqueles que Eles geraram na
humanidade; e daqueles há muitos tipos, diferindo em aparência do mais verdadeiro modelo
de homem para aquela forma que não se vê ou que não tem substância que são Eles.
Caminham invisíveis e fétidos em locais solitários onde as Palavras foram proferidas e os Ritos
ressoaram em seus Períodos. O vento algaravia com Suas vozes, e a Terra murmura com Sua
consciência. Eles dobram a floresta e esmagam a cidade, entretanto nenhuma floresta ou
cidade pode ver a mão que castiga. Kadath, no deserto frio, conheceu-Os, mas qual homem
conhece Kadath? O deserto gelado do Sul e as ilhas submersas do Oceano contêm pedras onde
Sua marca está gravada, mas quem já viu a profunda cidade congelada ou a torre lacrada e
toda coroada com algas e crustáceos? O Grande Cthulhu é Seu primo, entretanto só pode
espiá-Los obscuramente. Iäl Shub-Niggurath! Como uma vileza vocês Os conhecerão. A mão
deles está em suas gargantas, entretanto vocês não os vêem, e Sua morada é mesmo única
com a entrada guardada. Yog-Sothoth é a chave para o portal, onde as esferas se encontram. O
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homem reina agora onde Eles reinaram um dia; em breve, Eles reinarão onde o homem reina
agora. Depois do verão vem o inverno, e depois do inverno, o verão. Eles esperam pacientes e
fortes, porque aqui reinarão de novo.
O Dr. Armitage – associando o que estava lendo com o que ouvira sobre Dunwich e as
inquietantes presenças que por lá pairavam e sobre Wilbur Whateley e sua aura débil e
hedionda, que se estendia desde um nascimento dúbio até indícios de um provável matricídio
– sentiu uma onda de temor tão tangível quanto uma corrente vinda da fria viscosidade de um
túmulo. O gigante caprino e encurvado diante dele assemelhava-se à prole de um outro
planeta ou dimensão; como algo apenas parcialmente humano e ligado a golfos negros de
essência e entidade que se estendiam como fantasmas titânicos além de todas as esferas de
força e matéria, espaço e tempo. Em seguida, Wilbur levantou a cabeça e começou a falar
daquele modo estranho e ressoante que sugeria órgãos produtores de sons diferentes dos
comuns aos humanos.
- Sr. Armitage – disse – eu acho qu’eu tenho que levá aquele livro pra casa. Tem coisa
nele que eu tenho que exprimentá numas condição que num posso cunsegui aqui, e ia sê um
pecado
mortar deixá que umas norma besta me impidisse. Me deixa levá ele comigo, senhor, e eu juro
que
ninguém vai ficá sabeno. Num preciso dizê pro senhor que vou tomá conta direitim dele. Num
fui
eu que deixô essa cópia do Dee do jeitim que tá…
Ele parou quando viu a expressão negativa no rosto do bibliotecário, e suas próprias feições
caprinas tornaram-se maliciosas. Armitage, quase pronto a dizer-lhe que poderia tirar uma
cópia das partes que precisava, de repente pensou nas possíveis conseqüências e se conteve.
Era uma responsabilidade muito grande dar a tal ser a chave para essas blasfemas esferas
exteriores. Whateley percebeu como as coisas se encontravam e tentou responder
gentilmente.
-Ara, tá certo, se o senhor acha ansim. Tarveiz em Harvard eles num seja tão cheio de coisa
que nem o senhor. – E, sem dizer mais nada, levantou-se e saiu caminhando com suas
passadas largas, abaixando-se ao passar por cada porta.
Armitage ouviu o latido feroz do enorme cão-de-guarda e observou as passadas de gorila de
Whateley ao atravessar a pequena parte do câmpus visível da janela. Pensou nas fantásticas
histórias que ouvira e recordou os velhos artigos dominicais do Advertiser; nisso e também nas
informações que havia conseguido com os camponeses e habitantes do povoado de Dunwich
durante sua única visita lá. Coisas invisíveis de fora da Terra – ou, pelo menos, não da Terra
tridimensional – corriam fétidas e horríveis pelos vales estreitos da Nova Inglaterra e pairavam
obscenamente sobre os topos das montanhas. Há tempos elejá se convencera disso. Agora
parecia sentir a presença iminente de alguma fase terrível do horror que se impunha e
entrever um avanço diabólico nos domínios negros do antigo e até então passivo pesadelo.
Encerrou o Necronomicon com um estremecimento de repugnância, mas a sala ainda exalava
um mau cheiro ímpio e inidentificável. “Como uma vileza vocês os conhecerão”, citou. Sim, o
odor era o mesmo que aquele que lhe causou náuseas na casa dos Whateley há menos de três
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anos. Pensou uma vez mais em Wilbur, caprino e ominoso, e riu ironicamente dos rumores
que corriam no povoado sobre sua linhagem.
- Endogamia? – Armitage pronunciou meio alto para si. – Deus meu, que simplórios!
Mostre a eles o Grande Deus Pã de Arthur Machen e vão pensar que é um escândalo
corriqueiro como os de Dunwich! Mas que coisa – que amaldiçoada influência amorfa dessa ou
de fora desta Terra tridimensional – era o pai de Wilbur Whateley? Nascido no dia de Nossa
Senhora da Candelária – nove meses depois da Véspera de Maio de 1912, quando os rumores
sobre ruídos esquisitos provenientes da terra chegaram até Arkham -, que tipo de ser passeava
pelas montanhas naquela noite de maio? Que horror nascido no dia da Exaltação da Cruz
impunha-se ao mundo em carne e osso semi-humanos?
Durante as semanas seguintes, o Dr. Armitage começou a coletar todos os dados possíveis
sobre Wilbur Whateley e as presenças amorfas que circundavam Dunwich. Entrou em contato
com o Dr. Houghton de Aylesbury, que havia atendido o Velho Whateley em sua doença fatal,
e encontrou muito sobre o que ponderar nas últimas palavras do avô citadas pelo médico.
Uma visita ao Povoado de Dunwich não lhe trouxe maiores novidades; mas uma pesquisa mais
aprofundada no Necronomicon - naquelas partes que Wilbur havia procurado tão avidamente
– parecia fornecer novas e terríveis pistas sobre a natureza, métodos e desejos da estranha
maldade que tão vagamente ameaçava este planeta. Conversas mantidas em Boston com
vários estudiosos da cultura antiga e cartas a outros de diversos lugares trouxeram-lhe um
crescente assombro que passou lentamente por vários graus de inquietação até um estado de
medo espiritual realmente intenso. À medida que o verão aproximava-se, aumentava sua
sensação de que algo deveria ser feito sobre os terrores ocultos do vale superior do Miskatonic
e também sobre o ser monstruoso conhecido entre os humanos como Wilbur Whateley.
O horror de Dunwich chegou mesmo entre o dia 1° de agosto, comemoração da festa da
colheita, e o equinócio de 1928, e o Dr. Armitage estava entre aqueles que testemunharam
seu monstruoso prólogo. Nesse ínterim, ele ouvira sobre a grotesca viagem de Whateley a
Cambridge e sobre seus esforços desvairados para tomar emprestado ou copiar o que
necessitava do Necronomicon na Biblioteca Widener. Tais esforços foram em vão, já que
Armitage havia sido muito perspicaz ao deixar de sobreaviso todos os bibliotecários a cargo do
temível volume. Wilbur ficou extremamente nervoso em Cambridge; estava ansioso para ter o
livro e, contudo, quase igualmente ansioso para voltar para casa de novo, como se temesse as
conseqüências de se ausentar por muito tempo.
No princípio de agosto, manisfestou-se o resultado já meio que esperado, e, nas primeiras
horas do dia 3, o Dr. Armitage foi acordado repentinamente pelos selvagens e furiosos latidos
do feroz cão-de-guarda do câmpus universitário. Profundos e terríveis, os rosnados e latidos
semelhantes aos de um cão raivoso continuaram sempre em volume ascendente, mas com
pausas terrivelmente significativas. Então, soou um grito de uma garganta completamente
diferente – um grito que acordou metade dos moradores de Arkham e assombrou seus sonhos
para sempre -, um grito que não poderia vir de nenhum ser nascido na Terra ou
completamente humano.
Armitage, apressando-se em vestir algo e atravessando correndo a rua e o gramado em
direção aos prédios da faculdade, viu que outros já haviam chegado a sua frente e ouviu os
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ecos estridentes de um alarme antifurto que vinha da biblioteca. À luz da lua, uma janela
aberta mostrava-se como um buraco negro. O que viera havia, de fato, conseguido entrar, pois
os latidos e gritos, agora passando gradualmente a uma mistura de rosnados lentos e gemidos,
procediam inconfundivelmente de dentro. Um certo instinto avisou Armitage que o que estava
acontecendo não era algo para olhos despreparados virem, então ele empurrou a multidão
para trás com autoridade enquanto destrancava a porta do vestíbulo. Entre os demais, viu o
Prof. Warren Rice e o Dr. Francis Morgan, para quem havia contado algumas de suas
suposições e desconfianças, e acenou para que o acompanhassem. Os sons interiores, exceto
pelo ganido contínuo e vigilante do cão-de-guarda, haviam quase que desaparecido nesse
momento; mas foi então que Armitage sobressaltou-se ao perceber que um coro alto de
curiangos entre a moita de arbustos havia começado a piar num ritmo abominável, como se
em uníssono com as últimas respirações do moribundo.
O prédio estava exalando um terrível mau cheiro que o Dr. Armitage conhecia muito bem, e os
três homens atravessaram correndo o saguão em direção à pequena sala de leitura
genealógica de onde provinha o débil ganido. Por alguns segundos, ninguém ousou acender a
luz, até que Armitage juntou coragem e bateu no interruptor. Um dos três – não se sabe qual –
soltou um grito alto ao ver o que se esparramava a sua frente entre mesas bagunçadas e
cadeiras viradas. O Prof. Rice afirma que perdeu completamente a consciência por um instante,
embora suas pernas não bambearam nem ele caiu.
Aquela coisa, que se encontrava meio caída de lado numa poça fétida de ícor amarelo
esverdeado e de uma substância preta viscosa e de quem o cão havia rasgado toda a roupa e
uns pedaços da pele, tinha quase três metros de altura. Não estava morta de verdade, mas se
contorcia silenciosa e espasmodicamente enquanto seu peito arfava em monstruoso uníssono
com o enlouquecido piar dos curiangos que esperavam do lado de fora. Pedaços de couro de
sapato e de roupa rasgada estavam espalhados pela sala, e, bem perto da janela, um saco de
lona vazio se encontrava onde evidentemente havia sido jogado. Perto da escrivaninha central,
havia um revólver caído, com um cartucho picotado mas carregado que mais tarde serviu para
explicar por que não fora disparado. Contudo, a coisa eclipsava todas as outras imagens que
havia a seu redor naquele momento. Seria banal e não muito preciso dizer que nenhuma
caneta humana poderia descrevê-la, mas podemos dizer, com propriedade, que não poderia
ser vividamente visualizada por qualquer um cujas idéias de aspecto e contorno são vinculadas
demais às formas de vida comuns deste planeta e das três dimensões conhecidas. Sem sombra
de dúvida, era um ser parcialmente humano, com mãos e cabeça muito semelhantes às dos
homens, e o rosto caprino e sem queixo tinha a marca dos Whateley. Mas o tronco e as partes
inferiores do corpo eram tão teratologicamente espantosas que somente as roupas largas o
possibilitaram caminhar pela Terra sem ser desafiado ou erradicado.
Acima da cintura, era semi-antropomórfico, embora o peito – onde as patas dilacerantes do
cão ainda pousavam atentamente – tinha a pele reticulada como o couro de um crocodilo ou
jacaré. As costas eram malhadas de amarelo e preto e apresentavam uma certa semelhança
com a pele escamosa de certas cobras. Abaixo da cintura, contudo, era muito pior, pois aqui
toda a semelhança humana desaparecia e a pura fantasia começava. A pele era coberta por
uma camada grossa de pelos negros e ásperos, e uma infinidade de compridos tentáculos
cinza-esverdeados com ventosas vermelhas projetavam-se molemente do abdome. Sua
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disposição era repugnante e parecia seguir as simetrias de alguma geometria cósmica
desconhecida na Terra ou no sistema solar. Em cada um dos quadris, bem cravejado num tipo
de órbita rosada e ciliada, encontrava-se o que parecia ser um olho rudimentar; enquanto que,
em vez de um rabo, em seu lugar pendia um tipo de tromba ou palpo com marcas anulares
roxas e com muitas evidências de ser uma boca ou garganta não-desenvolvida. Os membros,
exceto por sua pelagem negra, lembravam grosseiramente as patas traseiras de sauros
gigantes da Terra pré-histórica e terminavam em hipotênares com veias saltadas que não eram
nem cascos nem garras. Quando respirava, o rabo e os tentáculos mudavam de cor
ritmicamente, como se obedecendo a alguma causa circulatória normal para o lado não-
humano de sua descendência. Nos tentáculos, isso era observável como um aprofundamento
do matiz esverdeado, ao passo que no rabo manifestava-se através da alternância entre seu
aspecto amarelado e um repulsivo branco acinzentado nos espaços entre os anéis roxos. De
sangue verdadeiro, não havia nada; só mesmo o ícor amarelo esverdeado que escorria pelo
chão pintado para além do alcance daquela viscosidade e deixava uma curiosa descoloração
por onde passava.
Como a presença dos três homens parecia despertar aquele ser moribundo, ele começou a
resmungar sem virar ou levantar a cabeça. O Dr. Armitage não fez nenhum registro escrito de
seus murmúrios, mas afirma categoricamente que nada em inglês foi pronunciado. Em
princípio, as sílabas desafiavam toda a correlação com qualquer linguagem da Terra, mas as
últimas trouxeram alguns fragmentos desconexos certamente retirados do Necronomicon,
aquela monstruosa blasfêmia em busca da qual a coisa havia sucumbido. Esses fragmentos, da
maneira que Armitage os recorda,
diziam algo como “Ngai, nghaghaa, bugg-shoggog, y’hah; Yog-Sothoth, Yog-Sothoth Eles
foram extinguindo-se conforme os curiangos davam seus gritos estridentes em crescendos
ritmados que pressagiavam algo medonho.
Então houve uma pausa em sua voz entrecortada, e o cão levantou a cabeça num longo e
lúgubre uivo. Uma mudança ocorreu no rosto amarelo e caprino da coisa prostrada, e os
grandes olhos negros fecharam-se de modo aterrador. Do lado de fora da janela, a gritaria dos
curiangos parou de repente, e sobre os murmúrios da multidão reunida ouviu-se o horripilante
zumbido e alvoroço de seu vôo. Tendo a lua como fundo, vastos bandos de plúmeos
observadores alçaram vôo e sumiram de vista, agitados com a presa que haviam encontrado.
De repente, o cão moveu-se de modo abrupto, deu um latido assustado e saltou para fora da
janela pela qual havia entrado. Um brado saiu da multidão, e o Dr. Armitage gritou para os
homens do lado de fora que ninguém poderia entrar até que a polícia ou o legista chegassem.
Ele agradeceu o fato de que as janelas eram altas demais para permitir que se visse dentro,
mas mesmo assim puxou para baixo todas as escuras cortinas, cobrindo cada uma das janelas
cuidadosamente. Nesse momento, chegaram dois policiais, e o Dr. Morgan, encontrando-os no
vestíbulo, advertiu-os, para seu próprio bem, a adiarem sua entrada na malcheirosa sala de
leitura até que o legista chegasse e a coisa prostrada pudesse ser coberta.
Enquanto isso, mudanças assustadoras estavam acontecendo no chão. Não é necessário
descrever o tipo e grau de encolhimento e desintegração que ocorria ante os olhos do Dr.
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Armitage e do Prof. Rice; mas se pode dizer que, com exceção da aparência externa do rosto e
das mãos, o elemento realmente humano em Wilbur Whateley devia ser muito pequeno.
Quando o legista chegou, só restava uma massa viscosa esbranquiçada sobre o chão de
madeira todo pintado, e o medonho odor havia quase que desaparecido. Aparentemente,
Whateley não tinha crânio ou esqueleto ósseo; pelo menos numa forma definida e concebível.
De algum modo, saíra a seu pai desconhecido.
No entanto, isso tudo foi somente o prólogo do verdadeiro horror de Dunwich. Oficiais
aturdidos procederam às formalidades; detalhes anormais foram devidamente ocultados da
imprensa e do público; e homens foram enviados a Dunwich e Aylesbury para fazer o
levantamento dos bens e notificar todos que pudessem ser herdeiros do falecido Wilbur
Whateley. Encontraram os camponeses em grande agitação, tanto devido aos crescentes
estrondos que provinham do interior das colinas arredondadas quanto pelo inusitado mau
cheiro e pelos sons do marulhar das ondas que cada vez soavam mais alto vindos da grande
concha vazia formada pela casa hermeticamente fechada dos Whateley. Earl Sawyer, que
tomou conta do cavalo e do gado durante a ausência de Wilbur, lamentavelmente
desenvolvera uma crise nervosa aguda. Os oficiais arranjaram desculpas para não entrar
naquele local fechado e desagradável e contentaram-se com limitar sua investigação dos
aposentos do falecido – os barracões recentemente consertados – a uma única visita. Eles
preencheram um volumoso relatório no forum de Aylesbury, e dizem que litígios referentes à
herança ainda tramitam entre os inumeráveis Whateley, decadentes ou não, do vale superior
do Miskatonic.
Um quase interminável manuscrito, redigido em caracteres estranhos num enorme livro razão
e considerado como um tipo de diário devido ao espaçamento e às variações na tinta e
caligrafia, apresentava-se como um quebra-cabeça desconcertante para aqueles que o
encontravam na velha cômoda que servia como escrivaninha de seu dono. Após uma semana
de discussão, foi enviado para a Universidade de Miskatonic, junto com a coleção de livros
estranhos do falecido, para estudo e possível tradução; mas mesmo os melhores lingüistas
logo viram não ser provável sua decifração com facilidade. E nenhum sinal do ouro antigo, com
o qual Wilbur e o Velho Whateley haviam sempre pagado suas dívidas, foi encontrado ainda.
Foi na noite do dia nove de setembro que o horror rompeu solto. Os ruídos das colinas haviam
sido muito acentuados no fim de tarde, e os cães latiram freneticamente durante toda a noite.
Aqueles que acordaram cedo no dia dez perceberam um peculiar mau cheiro no ar. Por volta
das sete horas, Luther Brown, o empregado da propriedade de George Corey, localizada entre
o Vale da Fonte Fria e o povoado, voltou correndo feito louco de seu passeio matinal à
Campina dos Dez Acres com as vacas. Estava quase tendo um colapso de medo quando entrou
tropeçando pela cozinha, enquanto que lá fora, no terreiro, o não menos assustado rebanho
dava patadas e mugia deploravelmente, após haver compartilhado o pânico do menino
durante todo o caminho de volta. Entre arquejos, Luther tentou balbuciar sua história para a
Sra. Corey.
- Lá no arto da estrada dispois do vale, dona Corey, tem arguma coisa lá! Parece que caiu
um raio e tudo o mato e as arvrinha da estrada foi empurrada p’a tráis iguar que se uma casa
tinha passado por ali. E isso num é nem o pió. Tem umas marca na estrada, dona Corey, umas
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marca redonda e grandona do tamanho dum barrir, tudo afundado iguar que se um elefante
tinha passado, e é uma coisa que quatro pé num pudia fazê. Oiei pra um ou dois antes de corrê
e vi que tava tudo cuberto com uns risco que se espaiava dum lugá só, iguar que se um leque
de foia de parmera, duas ou treis veiz mais grande que é, tinha socado fundo a estrada. E o
cheiro era horrívi, iguar que aquele invorta da casa do Fiticero Whateley.
Nesse momento, ele gaguejou e parecia tremer outra vez com o mesmo pavor que o tinha
feito voltar correndo para casa. A Sra. Corey, incapaz de extrair mais informações, começou a
telefonar para os vizinhos; iniciando assim, nas redondezas, o prólogo do pânico que
anunciava terrores maiores. Quando ligou para Sally Sawyer, governanta da propriedade de
Seth Bishop, o lugar mais próximo da propriedade dos Whateley, foi sua vez de escutar ao
invés de falar, pois Chauncey, filho da Sally, que dormiu muito mal, havia subido até o alto da
colina em direção à propriedade dos Whateley e voltado correndo aterrorizado após dar uma
olhada no lugar e também na pastagem onde as vacas do Sr. Bishop haviam sido deixadas a
noite toda.
É, dona Corey – chegou a voz trêmula pela linha telefônica -, Chauncey acabô de vortá de lá e
num conseguiu nem falá direito de tanto medo! Falô que a casa do Véiu Whateley exprodiu e
que tem madera espaiada tudo invorta iguar que se tinha donamite drento, só ficô o chão de
baixo, mas tá tudo cuberto com uma coisa que parece piche que tem um cheiro muito ruim e
escorre dos canto pro lugá d’onde as madera voaro pra longe. E tem umas marca mais feia no
terrero tamém – umas marca redonda mais grande que um barrir, e tudo grudento com aquela
coisa que tem na casa que exprodiu. Chancey, ele disse que eles vai lá pr’os lado dos pasto
d’onde formô uma faixa mais larga que uma tuia no chão, e tudos muro de preda tumbaro por
tudos lado d’onde ele passô.
E ele contô, dona Corey, cumo é que ele foi procurá as vaca do Seth, apavorado do jeito qu’ele
tava, e encontrô elas no pasto de cima perto do Campo do Demo num estado horrive. Metade
delas tinha sumido e quage a metade delas que ficô já num tinha mais sangue, com aquelas
ferida nelas iguar que as que apareceu no gado dos Whateley deis que o moleque preto da
Lavinny nasceu. O Seth saiu agora p’a dá uma oiada nelas, mas eu acho que ele num vai querê
chegá muito perto do sítio dos Whateley. O Chauncey num oió direito pra vê d’onde ia dá a
faixa dispois do pasto, mas ele disse que acha que vai p’a estrada do barranco inté a vila.
Eu falo pra sinhora, dona Corey, tem arguma coisa lá fora que não tinha que tá lá fora, e eu
acho que o preto Wilbur Whateley, que teve o fim que merecia, tá metido na criação dela. Ele
num era inteiro humano, sempre falo pra todo mundo; e eu acho que ele e o Véiu Whateley
deve de tê criado arguma coisa naquela casa pregada que era inda menos humano que ele.
Sempre teve umas coisa escondida invorta de Dunwich, coisa viva, que num é humana e nem
bom pr’os humano.
O chão tava falano onte de noite e de manhã Chauncey ouviu os curiango tão arto no Vale da
Fonte Fria que num cunsiguiu dormi mais. Intão ele achô que ouviu outro baruiu vinu lá do
sítio do Fiticero Whateley, um tar de baruiu de madera quebrano e despedaçano, iguar que se
arguém tava abrino uma caixa ou engradado grande lá longe. E com tudo isso, ele num
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conseguiu dormi inté que o sor nasceu, e num acordô muito cedo hoje de manhã, mais ele tem
que i de novo lá no Whateley pra vê o que tá sucedeno. Ele viu bastante, eu falo pra sinhora,
dona Corey! Isso num é nada baum, e eu acho que tudo os home devia se juntá e fazê arguma
coisa. Eu sei que arguma coisa muito ruim vai acontecê e eu tô sintino que a minha hora tá
chegano, mas eu entrego nas mão de Deus.
O seu fio Luther percebeu pra d’onde ia as marca? Não? Intãoce, dona Corey, se tava na
estrada do vale desse lado do vale e inda num chegô na sua casa, acho qu’eles deve de entrá
no vale. Eles ia fazê isso. Eu sempre falo que o Vale da Fonte Fria num é um lugá saudave nem
decente. Os curiango e os vagalume nunca agiro memo cumo se fosse criatura de Deus e tem
gente que fala que ocê pode ouvi umas coisa estranha correno e falano no ar lá embaxo se ocê
ficá no lugá certo entre os barranco de preda e a Toca do Urso.
Por volta das doze horas daquele dia, três quartos dos homens e meninos de Dunwich
reuniram-se e seguiram pelas estradas e prados que havia entre as recentes ruínas dos
Whateley e o Vale da Fonte Fria, examinando horrorizados as muitas pegadas monstruosas, o
gado mutilado dos Bishop, os destroços malcheirosos da sede e a vegetação esmagada e
contorcida dos campos e beiras de estrada. O que estava correndo solto pelo mundo
seguramente havia descido para o interior da grande e sinistra ravina, pois todas as árvores
nas encostas estavam envergadas e quebradas, e uma enorme alameda havia-se formado na
vegetação rasteira que cobre as ladeiras do precipício. Era como se uma casa, arrastada por
uma avalanche, houvesse descido escorregando pela emaranhada vegetação da ladeira quase
vertical. Nenhum som chegava do fundo da ravina, somente um fedor distante e indifinível; e
não é de se admirar que os homens preferissem ficar na beira e discutir, ao invés de descer e
enfrentar o desconhecido horror ciclópico em seu covil. Três cães que estavam com o grupo
haviam latido furiosamente de início, mas pareceram amedrontados e relutantes quando
próximos ao vale. Alguém telefonou para o Aylesbury Transcript contando as notícias, mas o
editor, acostumado às espantosas histórias de Dunwich, não fez mais do que inventar um
parágrafo jocoso sobre o fato, que foi reproduzido logo depois pela Associated Press.
Naquela noite, todos foram para casa, e, em todas elas e também nos celeiros, foram feitas
barricadas o mais sólidas possível. É inútil dizer que não foi permitido que nenhuma cabeça de
gado permanecesse em pasto aberto. Por volta das duas da manhã, um terrível mau cheiro e
os latidos furiosos dos cães acordaram a família de Elmer Frye, cuja propriedade se localizava
na margem oriental do Vale da Fonte Fria, e todos concordaram que podiam ouvir um tipo de
zunido abafado ou marulho vindo de algum lugar do lado de fora. A Sra. Frye propôs telefonar
aos vizinhos, e Elmer estava a ponto de concordar quando o barulho de madeira estilhaçada
interrompeu a conversa. Aparentemente, vinha do celeiro, e logo o gado começou a dar
patadas no chão e a berrar feito louco. Os cães babaram e se agacharam timidamente perto
dos pés da família entorpecida pelo medo. O Frye acendeu uma lanterna por força do hábito,
mas sabia que seria a morte sair naquele terreiro escuro. As crianças e as mulheres
choramingavam, evitando gritar por algum obscuro e vestigial instinto de defesa que lhes dizia
que suas vidas dependiam do silêncio. Por fim, o barulho do gado transformou-se somente
num lamento penoso, dando lugar a rachaduras, estalidos e crepitações, que soaram ainda
mais alto. Os Frye, amontoaram-se na sala e não ousaram mover-se até que os últimos ecos
realmente se extinguissem lá embaixo no Vale da Fonte Fria. Então, entre os desoladores
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gemidos vindos do estábulo e os demoníacos pios dos últimos curiangos no vale, Selina Frye
foi cambaleando até o telefone e espalhou o quanto pôde as notícias sobre a segunda fase do
horror.
No dia seguinte, toda a região de Dunwich estava em pânico, e grupos acovardados e
incomunicativos transitavam por onde se dera aquele diabólico acontecimento. Duas faixas
enormes de destruição estendiam-se do vale ao terreiro dos Frye, pegadas monstruosas
cobriam os trechos de terreno sem vegetação e um lado do velho celeiro vermelho havia
desmoronado completamente. Do gado, somente um quarto pôde ser encontrado e
identificado. Alguns dos animais haviam sido despedaçados de modo curioso, e todos os que
sobreviveram tiveram que ser sacrificados. Earl Sawyer sugeriu que se pedisse ajuda em
Aylesbury ou Arkham, mas outros consideraram que seria inútil. O Velho Zebulon Whateley, de
um ramo que hesitava entre a integridade física e mental e a decadência, fez sugestões
sinistramente desatinadas sobre ritos que deveriam ser praticados nos cumes das colinas. Ele
descendia de uma linhagem onde a tradição era forte, e suas lembranças de cânticos nos
grandes círculos de pedra não estavam totalmente ligadas a Wilbur e seu avô.
A noite caiu sobre essa localidade acometida e passiva demais para se organizar para uma
defesa real. Em certos casos, famílias muito amigas agrupavam-se sob um só teto e punham-se
a vigiar no escuro; mas, em geral, havia somente uma repetição das barricadas da noite
anterior e um gesto fútil e ineficaz de carregar mosquetes e armar-se com forcados. Contudo,
nada aconteceu, exceto alguns ruídos nas colinas; e, quando o dia nasceu, havia muitos que
esperavam que o novo horror houvesse ido embora tão rapidamente quanto chegara. E
algumas almas corajosas inclusive propuseram uma expedição ofensiva para descer vale
adentro, embora não tenham se aventurado a dar um exemplo concreto para a maioria ainda
relutante.
Ao cair de mais uma noite, as barricadas foram repetidas, embora houvesse menos
agrupamentos de famílias. De manhã, tanto os Frye quanto os Bishop relataram a agitação dos
cães e os vagos sons e maus cheiros que vinham de longe, enquanto que os primeiros
exploradores horrorizaram-se ao notar um novo conjunto de rastros monstruosos na estrada
que costeia a Colina Sentinela. Tal como antes, as laterais amassadas da estrada indicavam o
tamanho daquele horror blasfemo e assombroso; ao passo que a disposição dos rastros
parecia revelar uma passagem em duas direções, como se a montanha movente tivesse vindo
do Vale da Fonte Fria e retornado a ele pelo mesmo caminho. Na base da colina, uma faixa de
nove metros de pequenos arbustos esmagados seguia colina acima, e os homens ficaram
pasmos quando viram que mesmo os locais mais perpendiculares não faziam a trilha
implacável desviar. O que quer que fosse, aquele horror podia escalar um rochedo íngreme e
quase que completamente vertical; e, como os investigadores subiram até o cume da colina
por caminhos mais seguros, viram que a trilha acabava – ou melhor, convertia – lá.
Era aqui que os Whateley costumavam armar suas fogueiras diabólicas e entoar seus rituais
também diabólicos na pedra em forma de mesa na Véspera de Maio e na Véspera de Todos os
Santos. Agora aquela mesma pedra formava o centro de um vasto espaço trilhado ao redor
pelo horror montanhoso, enquanto que sobre sua superfície ligeiramente côncava encontrava-
se um grosso e fétido depósito da mesma substância preta viscosa observada no chão da sede
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em ruínas quando o horror escapou. Os homens entreolharam-se e murmuraram alguma coisa.
Então olharam para baixo. Aparentemente o horror havia descido por um caminho muito
parecido com o da subida. Especular era inútil. Razão, lógica e idéias normais de motivação
permaneceram confundidas. Somente o velho Zebulon, que não estava com o grupo, poderia
ter feito justiça à situação ou sugerido uma explicação plausível.
A noite de quinta-feira começou como as outras, mas terminou pior. Os curiangos no vale
haviam gritado com uma persistência tão incomum que muitos não puderam dormir, e, por
volta das três da manhã, os telefones de todas as pessoas envolvidas tocaram tremulamente.
Todos que atenderam ouviram uma voz muita assustada gritar: “Socorro, ai meu Deus!…” e
alguns pensaram ter ouvido um estrondo que se seguiu à interrupção da exclamação. Não
houve mais nada. Ninguém ousou fazer coisa alguma, e não se soube até de manhã de onde
era o telefonema. Então aqueles que o tinham recebido se telefonaram e descobriram que
somente os Frye não repondiam. A verdade apareceu uma hora depois, quando um grupo de
homens armados, que se reuniu às pressas, caminhou penosamente até a propriedade dos
Frye no topo do vale. Foi horrível, no entanto, não chegou a ser uma surpresa. Havia mais
faixas e marcas monstruosas, mas já não havia casa. Ela desmoronara como uma casca de ovo,
e, entre suas ruínas, não foi encontrado nada vivo ou morto. Apenas um mau cheiro e uma
substância preta viscosa. Os Elmer Frye haviam sido erradicados de Dunwich.
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Nesse ínterim, uma fase mais calma do horror e, entretanto, ainda mais espiritualmente
pungente havia-se desenvolvido de modo obscuro atrás de uma porta fechada de uma sala
repleta de estantes em Arkham. O curioso manuscrito ou diário de Wilbur Whateley, entregue
à Universidade de Miskatonic para sua tradução, causara muita preocupação e desconcerto
entre os especialistas em línguas antigas e modernas; seu alfabeto próprio, apesar de uma
semelhança geral com o enigmático árabe falado na Mesopotâmia, era completamente
desconhecido por qualquer autoridade que se pudesse consultar. A conclusão final dos
lingüistas era que o texto representava um alfabeto artificial, para dar o efeito de uma cifra;
embora nenhum dos métodos comuns de solução criptográfica pareciam fornecer qualquer
pista, mesmo quando aplicados tendo como base cada língua que o escritor possivelmente
haveria usado. Os livros antigos retirados da casa dos Whateley – enquanto extremamente
interessantes e, em vários casos, prometendo abrir novas e terríveis linhas de pesquisa entre
filósofos e homens de ciência -, não ajudaram em nada no que se refere a esse assunto. Um
deles, um tomo pesado com fecho de ferro, estava escrito em outro alfabeto desconhecido,
que era de uma espécie muito diferente e lembrava o sânscrito mais do que qualquer outra
coisa. O velho livro razão, por fim, ficou totalmente a cargo do Dr. Armitage, tanto devido a
seu interesse peculiar pelo tema dos Whateley quanto a seu amplo conhecimento lingüístico e
experiência no que se refere a fórmulas místicas da Antigüidade e da Idade Média.
Armitage imaginava que o alfabeto podia ser algo esotericamente usado por certos cultos
proibidos que vinham sendo transmitidos desde tempos remotos e que haviam herdado
muitas fórmulas e tradições dos magos do mundo sarraceno. Essa questão, contudo, ele não
julgou vital, já que seria desnecessário conhecer a origem dos símbolos se, conforme
suspeitava, eles fossem usados como uma cifra numa língua moderna. Acreditava que,
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considerando a grande quantidade de texto envolvida, era muito pouco provável que o autor
tivesse o trabalho de usar uma outra língua que não fosse a sua, exceto talvez em certas
fórmulas especiais ou encantamentos. Desse modo, ele abordou o manuscrito com a
pressuposição de que a maior parte dele estivesse em inglês.
O Dr. Armitage sabia, pelas repetidas falhas de seus colegas, que o enigma era profundo e
complexo e que nenhum método simples de solução podia merecer sequer uma tentativa.
Durante todo o final de agosto, ele se dedicou a adquirir o máximo de conhecimentos sobre
criptografia, recorrendo às fontes mais completas de sua própria biblioteca e passando noites
e noites entre os arcanos das obras: Poligraphia, de Trithemius; De Furtivis Literarum Notis, de
Giambattista Porta; Traité des Chiffres, de De Vigenere; Cryptomenysis Patefacta, de Falconer;
os tratados do século dezoito de Davys e Thicknesse; e autoridades razoavelmente modernas
como Blair, von Marten e a Kryptographik, de Klüber. Ele intercalou seu estudo dos livros com
abordagens ao manuscrito em si e, com o tempo, convenceu-se de que tinha que lidar com um
daqueles criptogramas especialmente sutis e engenhosos, nos quais muitas listas separadas de
letras correspondentes estão dispostas como uma tábua de multiplicação e a mensagem é
construída com palavras-chave arbitrárias de conhecimento apenas dos iniciados. As
autoridades mais velhas pareciam de muito mais ajuda que as novas, e Armitage concluiu que
o código do manuscrito era muito antigo, sem dúvida legado através de uma longa linhagem
de experimentadores. Várias vezes, ele parecia ter encontrado a luz, mas logo algum obstáculo
desconhecido o fazia retroceder. Então, com a aproximação de setembro, as nuvens
começaram a clarear. Certas letras, tal como usadas em certas partes do manuscrito,
emergiram definitiva e indiscutivelmente, tornando-se óbvio que o texto estava, de fato,
escrito em inglês.
Ao anoitecer do dia dois de setembro, a última das grandes barreiras cedeu, e o Dr. Armitage
leu, pela primeira vez, uma passagem contínua dos anais de Wilbur Whateley. Era, na
realidade, um diário, como todos haviam pensado, e estava expresso num estilo que mostrava
claramente uma mistura de erudição oculta e ignorância geral do estranho ser que o escreveu.
Já a primeira passagem longa que Armitage decifrou, um registro datado de 26 de novembro
de 1916, provou-se altamente alarmante e inquietante. Foi escrita, lembrava-se, por uma
criança de três anos e meio que parecia um rapaz de doze ou treze.
Hoje aprendi o Aklo para o Sabaoth (estava escrito), que não gostei, podia ser respondido da
colina e não do ar. Aquele da parte de cima mais na minha frente que eu tinha pensado que
estaria, e não parece ter muito cérebro da Terra.. Atirei no Jack, o collie do Elam Hutchins,
quando ele veio me morder, e Elam disse que me mataria se ele morresse. Acho que não vai. O
avô me fez dizer a fórmula Dho ontem à noite, e acho que vi a cidade interna nos 2 pólos
magnéticos. Eu irei àqueles pólos quando a Terra for dizimada, se eu não conseguir transpor
com a fórmula Dho-Hna quando eu a praticar. Eles do ar me disseram no Sabbat que passarrão
anos até que eu possa dizimar a Terra, e acho que o avô estará morto então, portanto terei
que aprender todos os ângulos dos planos e todas as fórmulas entre o Yr e o Nhhngr. Eles do
exterior ajudarão, mas não podem ganhar corpo sem sangue humano. Aquele da parte de
cima parece que terá a forma certa. Posso vê-lo um pouco quando faço o sinal Voorish ou
assopro o pó de Ibn Ghazi nele, e fica quase como eles na Véspera de Maio na Colina. O outro
rosto pode desaparecer um pouco. Imagino como parecerei quando a Terra for dizimada e não
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houver mais seres terrenos nela. Ele que veio com o Aklo Sabaoth disse que posso ser
transfigurado e que existe muito de exterior para ser trabalhado.
Ao amanhecer, o Dr. Armitage estava suando frio de terror e extremamente alerta e
concentrado em sua leitura. Ele não havia deixado o manuscrito durante a noite toda;
permanecera sentado a sua mesa, à luz elétrica, virando página após página com mãos
trêmulas para decifrar o texto críptico o mais rápido que pudesse. Muito nervoso, telefonara a
sua esposa para dizer que não iria para casa, e, quando ela lhe trouxe o café da manhã, ele
quase não comeu nada. Durante todo aquele dia, continuou lendo, por vezes se detendo
exasperadamente quando uma reaplicação do complexo código tornava-se necessária.
Troxeram-lhe o almoço e o jantar, mas ele comeu muito pouco de ambos. No meio da noite
seguinte, cochilou em sua cadeira, mas logo acordou com um emaranhado de pesadelos quase
tão horrendos quanto as verdades e ameaças à existência humana que havia descoberto.
Na manhã do dia quatro de setembro, o Prof. Rice e o Dr. Morgan insistiram em vê-lo um
pouco, partindo de lá trêmulos e mortalmente pálidos. Naquela noite, ele foi para a cama, mas
seu sono esteve muito picado. No dia seguinte, uma quarta-feira, voltou para o manuscrito e
começou a tomar notas copiosas das partes que ia lendo e daquelas que já havia decifrado. Na
madrugada daquela noite, ele dormiu um pouco numa espriguiçadeira de seu escritório, mas
voltou ao manuscrito de novo antes do amanhecer. Pouco antes do meio-dia, seu médico, o Dr.
Hartwell, telefonou dizendo que queria vê-lo e insistiu que ele parasse de trabalhar. Recusou-
se, afirmando que era da mais vital importância para ele completar a leitura do diário e
prometendo uma explicação a seu devido tempo. Naquele fim de tarde, bem quando
escureceu, ele terminou sua terrível e esgotante leitura e deixou-se cair exausto. Sua esposa,
ao trazer-lhe o jantar, encontrou-o num estado de semi-coma, mas ele ainda estava consciente
para lhe advertir com um grito agudo quando viu seus olhos vagarem por sobre o que ele
havia anotado. Levantando-se com fraqueza, juntou os papéis rascunhados e fechou-os num
grande envelope, que imediatamente colocou dentro do bolso interno de seu casaco. Tinha
força suficiente para chegar em casa, mas era tão evidente que precisava de ajuda médica que
o Dr. Hartwell foi chamado de imediato. Assim que o médico o pôs na cama, ele só conseguiu
murmurar repetidas vezes, “Mas o que, em nome de Deus, podemos fazer?”.
O Dr. Armitage dormiu, mas estava parcialmente delirante no dia seguinte. Não deu
explicações a Hartwell, mas em seus momentos mais calmos falou da necessidade imperativa
de uma longa reunião com Rice e Morgan. Seus devaneios mais absurdos eram de fato muito
alarmantes, incluindo apelos desesperados de que algo numa casa de fazenda totalmente
lacrada fosse destruído e também referências fantásticas a um certo plano pela extirpação da
humanidade inteira e de toda vida animal e vegetal da face da Terra por uma terrível e mais
antiga raça de seres de outra dimensão. Ele bradava que o mundo estava em perigo, já que as
Coisas Antigas desejavam devastá-lo e varrê-lo do sistema solar e do cosmos da matéria para
outro plano ou fase de existência do qual havia um dia saído há milhares de trilhões de eras.
Em outros momentos, requisitava o temível Necronomicon e o Daemonolatreia de Remigius,
nos quais parecia estar esperançoso de encontrar alguma fórmula para conter o perigo que ele
esconjurava.
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- Detenha-os, detenha-os! – gritava -. Aqueles Whateley queriam deixá-los entrar, e o pior
ainda está por vir! Digam a Rice e Morgan que devemos fazer alguma coisa; é um tiro no
escuro, mas sei como fazer o pó. … não foi alimentado desde o dia dois de agosto, quando
Wilbur veio aqui para morrer, a estas alturas. . . .
Mas Armitage tinha um físico saudável apesar dos seus setenta e três anos e curou-se de sua
indisposição após dormir aquela noite sem desenvolver nenhum estado febril. Ele acordou
tarde na sexta, lúcido, embora demonstrando um medo persistente e um enorme senso de
responsabilidade. Na tarde de sábado, ele se sentiu apto para ir até a biblioteca e convocar
Rice e Morgan para uma reunião, e, durante o resto daquele dia, os três homens estiveram
quebrando a cabeça na mais desatinada especulação e desesperado debate. Livros estranhos e
terríveis foram retirados em grande volume das estantes da biblioteca e de lugares onde
estavam guardados com segurança; diagramas e fórmulas foram copiados com uma pressa
febril e em quantidade assustadora. De ceticismo, não havia nenhum. Todos os três haviam
visto o corpo de Wilbur Whateley prostrado no chão numa sala daquele mesmo prédio, e,
depois disso, nenhum deles poderia sentir a menor inclinação a tratar o diário como delírio de
um louco.
As opiniões estavam divididas a respeito de notificar a Polícia Estadual de Massachusetts,
porém a negativa finalmente venceu. Havia coisas envolvidas que aqueles que não haviam
visto nada simplesmente não podiam acreditar, como de fato ficou claro durante certas
investigações subseqüentes. Tarde da noite, foi encerrada a reunião sem que houvessem
traçado um plano definitivo, mas, durante todo o domingo, Armitage esteve ocupado
comparando fórmulas e misturando substâncias químicas obtidas do laboratório da faculdade.
Quanto mais refletia sobre o infernal diário, mais estava inclinado a duvidar da eficácia de
qualquer agente material para eliminar a entidade que Wilbur Whateley havia deixado trás si –
a entidade ameaçadora da Terra que, desconhecida por ele, estava para irromper em poucas
horas e tornar-se o memorável horror de Dunwich.
Segunda-feira foi uma repetição de domingo para o Dr. Armitage, pois a tarefa em mãos exigia
uma infinidade de pesquisas e experimentos. Consultas posteriores ao diário monstruoso
ocasionaram várias mudanças de planos, e ele sabia que mesmo no final haveria ainda muita
incerteza. Na terça-feira, já tinha uma linha definitiva de ação planejada minuciosamente e
acreditava poder viajar a Dunwich dentro de uma semana. Então, na quarta-feira, veio o
grande choque. Escondida num canto do Arkham Advertiser, encontrava-se uma pequena nota
jocosa da Associated Press, dizendo que o whisky de contrabando de Dunwich havia criado um
monstro que batia todos os recordes. Armitage, meio atordoado, só conseguiu telefonar para
Rice e Morgan. Discutiram madrugada adentro e, no dia seguinte, houve um turbilhão de
preparativos por parte de todos. Armitage sabia que estaria-se metendo com forças terríveis,
contudo viu que não havia outra maneira de acabar com aquela mais profunda e maligna
confusão que outros haviam feito antes dele.
9
Na sexta-feira de manhã, Armitage, Rice e Morgan partiram de carro para Dunwich, chegando
ao povoado por volta da uma da tarde. O dia estava agradável, mas mesmo sob a clara luz do
sol uma espécie de calmo pavor e agouro parecia pairar por sobre as estranhas colinas
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arredondadas e as profundas e sombrias ravinas da acometida região. Por vezes, sobre um
topo de montanha, podia-se vislumbrar recortado contra o céu um lúgubre círculo de pedras.
Pelo ar de silenciado temor presente na venda do Osborn, eles perceberam que algo horrível
havia acontecido e logo ficaram sabendo da aniquilação da casa e da família de Elmer Frye. Por
toda aquela tarde, rodaram por Dunwich, questionando os habitantes locais a respeito de tudo
aquilo que havia acontecido e vendo com seus próprios olhos, em crescente agonia, as
sombrias ruínas dos Frye com traços remanescentes da substância preta viscosa, os rastros
blasfemos no terreiro dos Frye, o gado ferido de Seth Bishop e as enormes faixas de vegetação
arrasada em vários lugares. A trilha que subia e descia a Colina Sentinela parecia para Armitage
de uma significação quase cataclísmica, e, durante um certo tempo, permaneceu olhando para
a sinistra pedra em forma de altar no cume.
Por fim, os visitantes, informados sobre um grupo da Polícia Estadual que viera de Aylesbury
aquela manhã em resposta aos primeiros relatos telefônicos da tragédia dos Frye, decidiram
procurar os oficiais e comparar suas impressões até onde fosse viável. Isso, contudo, acharam
mais fácil de planejar do que de realizar, visto que nenhum sinal do grupo podia ser
encontrado em qualquer direção. Eles eram cinco num carro, que agora se encontrava parado
e vazio perto das ruínas no terreiro dos Frye. Os habitantes locais, havendo todos falado com
os policiais, pareciam primeiramente tão perplexos quanto Armitage e seus companheiros. Foi
quando o velho Sam Hutchins pensou em algo que o deixou pálido; cutucou Fred Farr e
apontou para o buraco úmido e profundo que se escancarava ali perto.
- Deus do céu – disse ofegante – Eu falei pr’ eles num descê p’a drento do vale, e eu nunca
pensei que arguém ia fazê isso com aquelas marca e aquele cheiro e os curiango tudo berrano
lá embaixo naquela escuridão do meio-dia. . . .
Tanto os habitantes locais quanto os visitantes sentiram um calafrio, e todos os ouvidos
pareciam escutar de forma instintiva e inconsciente. Armitage, agora que havia
verdadeiramente encontrado o horror e seu rastro de destruição, tremeu com o peso da
responsabilidade que lhe era imposta. A noite iria cair em breve, e era então que a blasfêmia
montanhosa movia-se pesadamente sobre seu curso bizarro. Negotium Perambulans in
tenebris …. O velho bibliotecário recitou a fórmula que havia memorizado e agarrou o papel
que continha a alternativa um que não havia memorizado. Viu que sua lanterna elétrica estava
em bom funcionamento. Rice, a seu lado, pegou de uma maleta um pulverizador de metal do
tipo usado para combater insetos; enquanto Morgan tirava da caixa o rifle de caça grossa no
qual confiava, apesar dos avisos dos colegas de que nenhuma arma material ajudaria.
Armitage, que havia lido o horrendo diário, sabia muito bem que tipo de manifestação esperar,
mas não atemorizou mais as pessoas de Dunwich dando a eles quaisquer referências ou pistas.
Ele esperava que a coisa pudesse ser derrotada sem qualquer revelação ao mundo sobre a
monstruosidade da qual havia escapado. À medida que escurecia, os habitantes locais
começaram a se dispersar em direção a suas casas, ansiosos por se trancar dentro delas,
apesar da presente evidência de que todas as fechaduras e trancas humanas eram inúteis
perante uma força que podia derrubar árvores e esmagar casas a seu bel prazer. Eles
balançaram as cabeças ao saber do plano dos visitantes de ficar a postos nas ruínas dos Frye
perto do vale; e assim que saíram, tinham pouca expectativa de vê-los de novo algum dia.
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Houve estrondos embaixo das colinas naquela noite, e os curiangos piaram ameaçadoramente.
De vez em quando, um vento, soprando por sobre o Vale da Fonte Fria, trazia um toque de
inefável fedor para o ar pesado da noite; tal fedor todos os três observadores já haviam
sentido uma vez, quando estiveram perto de uma coisa moribunda que havia passado por
quinze anos e meio como um ser humano. Mas o procurado terror não apareceu. O que quer
que estivesse lá embaixo no vale estava esperando o momento propício, e Armitage disse a
seus colegas que seria suicídio tentar atacá-lo no escuro.
Amanheceu lividamente, e os sons noturnos pararam. Era um dia cinza e triste, com uma garoa
intermitente; e nuvens cada vez mais carregadas pareciam amontoar-se além das colinas em
direção noroeste. Os homens de Arkham estavam indecisos sobre o que fazer. Buscando
abrigo contra a chuva que aumentava embaixo de uma das poucas construções que ainda
restavam na propriedade dos Frye, discutiram a conveniência de esperar ou partir para a
agressão descendo vale adentro em busca da inominável e monstruosa presa. O aguaceiro
aumentou, e estrépitos de trovões soaram vindos de horizontes distantes. Relâmpagos difusos
tremeluziram, e então um raio bifurcado caiu próximo de onde estavam, como se descesse
para dentro do próprio vale amaldiçoado. O céu ficou muito escuro, e os observadores
torceram para que a tempestade fosse daquelas curtas e violentas que são seguidas por um
céu limpo.
Ainda estava horripilantemente escuro quando, não muito mais de uma hora depois, uma
confusa babel de vozes soou lá embaixo na estrada. Em seguida, apareceu um grupo de mais
de uma dúzia de homens, correndo, gritando e até mesmo choramingando histericamente.
Alguém que vinha à frente começou a dizer algumas palavras soluçando, e os homens de
Arkham sobressaltaram-se quando aquelas palavras adquiriram uma forma coerente.
- Pai do céu, pai do céu – a voz quase não saiu. – Tá vino de novo, e agora de dia! Ta por aí,
tá andano por aí agorica memo, e só Deus sabe quano vai acabá com tudo mundo!
Ofegante, o narrador silenciou, mas outro continuou a história.
Faiz quage uma hora que aqui o Zeb Whateley ouviu o telefone tocá e era a dona Corey, muié
do George, que mora pra baixo da incruziada. Ela falô que o menino Luther tava tocano o gado
p’a drento dispois do raio que caiu, quano viu que as arvre tava vergano p’a drento do outro
lado do barranco e sentiu o memo chero ruim qu’ele sentiu quano incontró aquelas baita
pegada segunda de manhã. E ela falô qu’ele falô que feiz um subio e um baruio de água, que
as arvre e o mato num pudia fazê suzinho, e de repente as arvre do lado da estrada começaro
a vergá pr’um lado só, e feiz um baruio horrive de pisada forte espirrano barro. Mais vê só, o
Luther num viu nadinha, só as arvre e o mato vergano.
Aí lá na frente d’onde o corgo dos Bishop passa por baixo da estrada, ele ouviu a ponte rangê e
estralá, e pudia contá direitim o baruio da madera rachano e quebrano. E ele num viu nadinha
memo, só as arvre e o mato vergano. E quano a Colina Sentinela começo a estralá, o Luther
teve corage de subi até d’onde ele tinh’ovido o primer’ estralo e oiô pr’o chão. Só tinha barro e
água, e o céu tava preto, e a chuva tav’apagano as pegada demais de ligero; mais deis’ da boca
do barranco, d’onde as arvre tinh’entortado, inda tinh’umas marca danada de grande, iguar as
qu’ele viu segunda de manhã.
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Nesse momento, o primeiro e alvoroçado narrador interrompeu.
Mais aquilo num é o pobrema agora, aquilo foi só o começo. O Zeb aqui tava chamano o povo
e tudo mundo tava escutano quano ligaro do sítio do Seth Bishop. A Sally, que toma conta da
casa, tava berrano que nem doida – tinh’acabado de vê as arvre vergano do lado da estrada, e
falo que fazia um baruio de amassá, iguar que um elefante pisano forte e esmagano tudo no
caminho pra casa. Intão ela levantô e falô de repente dum cheiro horrívi e falô que o fio dela
Chancey tava gritano que era o memo cheiro qu’ele sintiu lá em riba nas ruína dos Whateley
na segunda de manhã. E os caçoro tava tudo latino e gemeno feio.
E intão ela sortó um grito terrívi e falô que o barracão lá embaixo na estrada tinha acabado de
dismoroná iguar que se a tempestade tivesse pasado por lá, só que o vento num era forte
ansim pra fazê aquilo. Tudo mundo tava ouvino e nóis consiguiu escutá a respiração forte dum
montão de gente pelo telefone. De repente, Sally gritô tra’veiz e falô que a cerca da frente da
casa tinha acabado de quebrá em mir pedacim, mais num tinha ninhum sinar do que tinha
feito aquilo. Intão tudo mundo no telefone consiguiu ouvi o Chancey e o véio Seth Bishop
gritano tamém, e a Sally tava berrano arto que arguma coisa pesada tinha batido na casa, num
era raio nem nada, mais arguma coisa pesada forçano a frente, que ficava se jogano e forçano,
forçano, mais ocê num pudia vê nada das janela da frente. E intão… e intão…
Traços de pavor realçaram-se em cada rosto; e Armitage, tremendo como estava, mal pôde
estimular o narrador a continuar.
- E intão … a Sally gritô arto: “Acode, a casa tá dismoronano”. . . e pelo telefone nóis
consiguiu ovi o baruião de tudo quebrano e uma gritaria danada . . . iguar que quano o sítio do
Elmer Frye sumiu, só que pió ….
O homem fez uma pausa, e outro do grupo falou.
- Foi só isso memo, nenhum baruiu nem chiado no telefone despois daquilo. Só uma
paradera. Nóis que ouviu isso saímo c’os nosso carro e carroça p’a cunsigui juntá bastante
home lá no Corey e vim aqui pra vê que ocê achava mió fazê. O que eu acho memo é que é o
jurgamento de Deus por causa dos nosso pecado, que nenhum de nóis pode nunca fugi.
Armitage viu que havia chegado o momento para uma ação verdadeira e falou decisivamente
para o hesitante grupo de camponeses assustados.
Devemos segui-la, rapazes – disse num tom de voz o mais tranqüilizador possível. – Acredito
que haja uma chance de fazer com que pare. Vocês sabem que aqueles Whateley eram bruxos,
pois bem, essa coisa é uma coisa de feitiçaria e deve ser derrotada pelos mesmos meios. Vi o
diário de Wilbur Whateley e li alguns dos estranhos livros antigos que ele costumava ler; e
acho que sei o tipo certo de fórmula mágica que devo recitar para fazer com que a coisa
despareça. É claro que não se pode ter certeza, mas vale a pena tentar. É invisível – sabia que
seria – mas há um pó neste pulverizador de longa distância que pode fazê-lo aparecer por um
segundo. Mais tarde vamos experimentá-lo. É uma coisa horrorosa demais para permanecer
viva, mas não é tão má quanto o que Wilbur Whateley teria deixado para nós se tivesse vivido
mais. Vocês nunca saberão do que o mundo escapou. Agora só temos essa única coisa com
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que lutar, e não pode multiplicar-se. Pode, contudo, causar muito dano; então não devemos
hesitar em livrar a comunidade dela.
Devemos segui-la, e o modo de começar é indo até o lugar que acabou de ser arrasado. Que
alguém indique o caminho; não conheço suas estradas muito bem, mas imagino que deva
haver um atalho pelo mato. O que vocês acham?
Os homens esquivaram-se por um momento, e então Earl Sawyer falou calmamente,
apontando com um dedo encardido através da chuva que diminuia aos poucos.
- Acho que ocê pode chegá até o sítio do Seth Bishop mais dipressa cortano pelo mato
mais baixo aqui, passano pela parte rasa do corgo e subino pelas terra roçada do Carrier e
dispois pela mata. O sítio aparece na beira da parte arta da estrada, um poquim do otro lado.
Armitage, Rice e Morgan começaram a caminhar na direção indicada; e a maioria dos
habitantes locais seguiram-nos devagar. O céu estava ficando mais limpo, e havia indícios de
que a tempestade passara. Quando Armitage inadvertidamente tomava o caminho errado, Joe
Osborn avisava-o e andava na frente para mostrar o correto. A coragem e a confiança estavam
crescendo, embora o crepúsculo na floresta que cobria a colina quase perpendicular localizada
no final do atalho – e entre cujas fantásticas árvores antigas tinham que escalar como se
subissem uma escada -, impunha um teste severo a essas qualidades.
Por fim, chegaram a uma estrada lamacenta no momento em que o sol saía. Eles estavam um
pouco além da propriedade de Seth Bishop, mas as árvores tombadas e os horrendos e
inconfundíveis rastros mostravam o que havia passado por ali. Só alguns minutos foram gastos
pesquisando as ruínas que se encontravam à beira do abismo. Tudo ocorreu como no
incidente dos Frye, e nada vivo ou morto foi encontrado em nenhuma das fachadas derruídas
que haviam sido a casa e o celeiro dos Bishop. Ninguém queria permanecer ali entre o mau
cheiro e a substância preta viscosa, mas todos se viraram instintivamente para a fileira de
marcas horríveis que se dirigiam para a arruinada casa dos Whateley e para as ladeiras
coroadas de altares da Colina Sentinela.
Ao passar pelo local onde Wilbur Whateley residia, os homens estremeceram-se visivelmente
e pareciam misturar hesitação a seu entusiasmo outra vez. Não era brincadeira seguir o rastro
de algo tão grande quanto uma casa que não se podia ver, mas aquilo tinha toda a
malevolência destrutiva de um demônio. Do lado oposto da base da Colina Sentinela, os
rastros deixavam a estrada, e havia aquele envergamento e emaranhamento da vegetação
visível ao longo da extensa faixa que marcava a primeira trilha do monstro indo e voltando do
cume.
Armitage exibiu uns binóculos com uma considerável capacidade de aumento e perscrutou o
precipício verde que ladeava a colina. Então, ele passou o instrumento para Morgan, cuja vista
era melhor. Após um momento de observação atenta, Morgan soltou um grito agudo,
passando-o para Earl Sawyer e indicando com o dedo um certo ponto no precipício. Sawyer,
tão desajeitado quanto a maioria dos que não usam instrumentos óticos, atrapalhou-se um
pouco, mas, finalmente, focou as lentes com a ajuda de Armitage. Assim que localizou o ponto,
seu grito foi menos reprimido do que havia sido o de Morgan.
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- Deus todo poderoso, o mato e as arvrinha tá se mexeno! Tá subino, bem devagarinho, se
rastano lá pra riba agorica memo, só Deus sabe p’a modi quê!
Então, o germe do pânico pareceu espalhar-se por entre os exploradores. Uma coisa era
perseguir a entidade inominável, bem outra era encontrá-la. As fórmulas mágicas podiam
estar corretas, mas e se não estivessem? Vozes começaram a questionar Armitage sobre o que
ele sabia a respeito da coisa, e nenhuma resposta parecia satisfazê-los de verdade. Todos
pareciam sentir-se em grande proximidade a fases da Natureza e da existência totalmente
proibidas e externas à sã experiência da humanidade.
10
Finalmente, os três homens de Arkham – o velho de barba branca Dr. Armitage, o atarracado e
grisalho Prof. Rice e o magro e de aparência jovem Dr. Morgan – subiram a montanha sozinhos.
Depois de uma instrução muito paciente a respeito de sua focagem e uso, eles deixaram os
binóculos com o amedrontado grupo que permaneceu na estrada; e, enquanto subiam, o
instrumento foi passado de mão em mão para que pudessem ser observados de perto. Era um
trajeto difícil, e Armitage teve que ser ajudado mais de uma vez. Bem acima do esforçado
grupo, a grande faixa tremia quando seu infernal criador passava de novo por ela com a
lentidão de uma lesma. Assim, tornou-se óbvio que os perseguidores estavam ganhando
terreno.
Curtis Whateley, do ramo não decadente, era quem estava com os binóculos quando o grupo
de Arkham desviou-se radicalmente da faixa. Ele disse à multidão que os homens estavam
evidentemente tentando chegar a um pico secundário que desse vista para a faixa num ponto
consideravelmente à frente de onde o matagal estava agora tombando. Isso, de fato, provou
ser verdade, pois o grupo foi visto alcançando a elevação menor momentos depois que a
blasfêmia invisível havia passado por lá.
Então, Wesley Corey, que havia pegado o instrumento, gritou que Armitage estava ajustando o
pulverizador que Rice segurava e que algo devia estar para acontecer. Os homens agitaram-se
apreensivamente, relembrando que era esperado que o pulverizador desse ao horror oculto
um momento de visibilidade. Dois ou três homens fecharam os olhos, mas Curtis Whateley
apanhou de volta os binóculos e estendeu seu campo de visão para o máximo. Viu que Rice, da
posição vantajosa em que se encontrava o grupo – acima e atrás da entidade -, tinha uma
chance excelente de espalhar o poderoso pó com um ótimo efeito.
Os outros, sem o telescópio, viram apenas por um instante uma nuvem cinza – uma nuvem de
cerca do tamanho de um prédio moderadamente alto – perto do topo da montanha. Curtis,
que estava com o instrumento, derrubou-o com um grito estridente no barro da estrada onde
se podia atolar até o tornozelo. Ele cambaleou e teria caído no chão se dois ou três de seus
companheiros não o tivessem agarrado e mantido-o em pé. Tudo o que pôde fazer foi
lamentar-se de modo quase inaudível.
- Ai, ai, Deus todo poderoso. . . aquilo… aquilo. . . .
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Houve um pandemônio de perguntas, e somente Henry Wheeler pensou em resgatar o
instrumento caído e tirar o barro dele. Curtis havia perdido os sentidos e mesmo respostas
isoladas eram demais para ele.
- Mais grande que uma tuia . . . tudo feito de corda turcida . . . interim do jeito dum ovo de
galinha mais grande que carqué coisa com mais de dúzia de perna iguar que uns barrir que
fechava pela metade quano eles pisava… num tinha nada de sólido, iguar que uma geléia, e
feito dumas corda turcida separada que se empurrava junto . . . uns óio grande e sartado pur
tudo lado. . . umas deiz ou vinte boca ou tromba sartano pra fora de tudo lado, do tamanho
duma chaminé de fogão, e tudo mexeno e abrino e fechano . . . tudo cinza, c’uns tipo de argola
azur ou roxa . . . e pai do céu, aquela mitade de cara lá em riba!. . .
Esta lembrança final, o que quer que fosse, significou demais para o pobre Curtis; e ele
desmaiou completamente antes que pudesse dizer qualquer coisa mais. Fred Farr e Will
Hutchins carregaram-no para a lateral da estrada e o deitaram na grama úmida. Henry
Wheeler, tremendo, virou os binóculos resgatados em direção à montanha para ver o que
fosse possível. Através das lentes, distinguiam-se três figuras minúsculas, correndo em direção
ao cume o mais rápido que a íngreme ladeira permitia. Só isso, nada mais. Então, todos
notaram um barulho estranhamente inoportuno no vale profundo atrás, e mesmo na
vegetação rasteira da própria Colina Sentinela. Era o piar de inúmeros curiangos, e, em seu
coro estridente, parecia estar escondida uma nota de tensa e maligna expectativa.
Earl Sawyer, então, pegou os binóculos e relatou que as três figuras estavam na crista mais alta,
praticamente no mesmo nível da pedra-altar, mas a uma distância considerável dela. Um deles,
disse, parecia estar levantado as mãos acima da cabeça a intervalos rítmicos; e, enquanto
Sawyer mencionava a circunstância, o grupo parecia ouvir à distância um som lânguido e com
uma certa musicalidade, como se um cântico em alto tom estivesse acompanhando os gestos.
A bizarra silhueta sobre aquele pico remoto deve ter sido um espetáculo infinitamente
grotesco e impressionante, mas nenhum observador estava com disposição para uma
apreciação estética. “Eu acho qu’ele tá falano as palavra mágica”, sussurrou Wheeler enquanto
arrebatava os binóculos de volta. Os curiangos estavam piando furiosamente e num ritmo
singularmente curioso e irregular, bem diferente daquele do ritual.
De repente, o brilho do sol pareceu diminuir sem a intervenção de qualquer nuvem visível. Era
um fenômeno muito peculiar e foi bem notado por todos. Um som estrondeante parecia estar-
se formando embaixo das colinas, em estranha concordância com um estrondo que vinha
claramente do céu. Um relâmpago cintilou no alto, e o grupo abismado procurou em vão por
presságios de tempestade. O cântico dos homens de Arkham agora se tornou inconfundível, e
Wheeler viu através do instrumento que eles estavam levantando os braços ao ritmo do
encantamento. De alguma propriedade rural longínqua, chegaram frenéticos latidos de cães.
A mudança nas tonalidades da luz do sol aumentou, e o grupo contemplou maravilhado o
horizonte. Uma escuridão arroxeada, nascida de nada mais do que um aprofundamento
espectral do azul celeste, impelia-se por sobre as retumbantes colinas. Então, relampejou de
novo, de forma mais brilhante do que antes, e o grupo imaginou que havia uma certa neblina
ao redor da pedra-altar no ápice distante. Contudo, ninguém estava olhando com os binóculos
naquele momento. Os curiangos continuaram com sua vibração irregular, e os homens de
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Dunwich prepararam-se, em meio a grande tensão, contra alguma ameaça imponderável de
que a atmosfera estava sobrecarregada.
Sem que fossem esperados, chegaram aqueles profundos, dissonantes e roucos sons vocais
que nunca sairão da memória daquele acometido grupo que os ouviu. Não haviam nascido de
nenhuma garganta humana, pois os órgãos dos homens não podem produzir tais perversões
acústicas. É mais provável dizer que eles provinham do próprio abismo, se não fosse tão
inconfundível que sua fonte era a pedra-altar no pico. De qualquer modo, é quase errôneo
chamá-los de sons, já que muito de seu horripilante e infra-grave timbre falava para partes
sombrias de consciência e terror muito mais sutis do que o ouvido; contudo, deve-se chamá-
los assim, já que sua forma era incontestável embora vagamente a de palavras semi-
articuladas. Eram altos – altos como os estrondos e o trovão sobre os quais ecoavam –
contudo não provinham de nenhum ser visível. E porque a imaginação pode servir de fonte
hipotética para o mundo dos seres não-visíveis, o grupo amontoado na base da montanha
amontoou-se ainda mais e se encolheu como se esperasse um desastre.
- Ygnaiih. . . ygnaiih . . . thflthkh ‘ngha . . . Yog-Sothoth. . . - soou o horripilante grasnido vindo
do espaço. – Y’bthnk. . . h ‘ehye - n ‘grkdl’lh. . .
Nesse momento, o impulso da fala parecia faltar, como se uma terrível luta psíquica estivesse
acontecendo. Henry Wheeler voltou a olhar com os binóculos, mas só viu as grotescas
silhuetas das três figuras humanas no pico, todas movendo os braços furiosamente em gestos
estranhos como se o encantamento estivesse próximo de seu fim. De quais poços negros de
medo ou sentimento aquerôntico, de quais desconhecidos golfos de consciência extra-cósmica
ou herança obscura e muito latente, foram trazidos aqueles semi-articulados grasnidos de
trovão? Nesse momento, eles começaram a adquirir força e coerência renovadas enquanto
aumentava o ímpeto de seu último e definitivo frenesi.
- Eh-ya-ya-ya-yahaah - e ‘yayayayaaaa. . . ngh ‘aaaaa . . . ngh ‘aaa . . . h ‘yuh. . . hyuh . . .
HELP! HELP!. . . ff-ff-ff-FATHER! FATHER! YOG-SOTHOTH!. . .
Mas isso foi tudo. O pálido grupo que estava na estrada, ainda abalado com as sílabas
indiscutivelmente inglesas que haviam fluído densa e ameaçadoramente do enfurecido espaço
vazio ao lado daquela repelente pedra-altar, nunca mais ouviria tais sílabas outra vez. Em
seguida, sobressaltaram-se violentamente com o terrível estrondo que parecia rasgar as
colinas; o ensurdecedor e cataclísmico estrépito cuja origem, fosse na Terra ou no céu,
nenhum ouvinte foi capaz de afirmar. Um único raio caiu do zênite púrpura e atingiu a pedra-
altar, e uma gigantesca onda de invisível força e indescritível mau cheiro, vinda da colina,
assolou todo o campo. As árvores, o mato e a vegetação rasteira foram assolados por sua fúria,
e o amedrontado grupo na base da montanha, enfraquecido pelo fedor letal que parecia estar
a ponto de asfixiar a todos, foi quase arremessado do chão onde pisava. Cães uivavam à
distância; o mato e as folhagens murcharam, passando de verde a um curioso e doentio cinza
amarelado, e sobre o campo e a floresta espalharam-se os corpos dos curiangos mortos.
O mau cheiro passou rapidamente, mas a vegetação nunca mais voltou a ser a mesma. Até
hoje, há algo esquisito e ímpio na vegetação que cresce naquela temível colina ou a seu redor.
Curtis Whateley mal estava recobrando a consciência quando os homens de Arkham desceram
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lentamente a montanha sob os raios de sol agora mais brilhantes e imaculados. Estavam sérios
e calados e pareciam atordoados por memórias e reflexões ainda mais terríveis do que aquelas
que haviam reduzido o grupo de habitantes locais a um estado de estremecimento e
intimidação. Em resposta a um turbilhão de perguntas, eles apenas balançaram as cabeças e
reafirmaram um fato de vital importância.
- A coisa se foi para sempre – disse Armitage. Foi decomposta, transformando-se naquilo que
era originalmente e não pode existir outra vez. Era uma impossibilidade num mundo normal.
Somente uma ínfima parte sua era mesmo matéria em qualquer sentido que conhecemos. Era
como seu pai, e a maior parte dela voltou para ele em algum vago domínio ou dimensão fora
de nosso universo material, em algum vago abismo do qual somente os mais amaldiçoados
ritos de blasfêmia humana poderiam tê-la chamado por um momento nas colinas.
Houve um breve silêncio, e naquela pausa os sentidos dispersos do pobre Curtis Whateley
começaram a se unir de volta numa certa continuidade, e, então, ele levou as mãos à cabeça
soltando um gemido. As lembranças pareciam-se retomar onde haviam parado, e o horror da
visão que o havia prostrado arrebatou-o novamente.
- Ai, ai, Deus meu, aquela meia cara, aquela meia cara lá no arto dele . . . aquela cara c’os
óio vermeio e o cabelo branco enrolado, e sem queixo, iguar que os Whateley . . . Era um porvo,
uma centopéia, pareceno uma aranha, mas a metade da cara era de home no arto dele, e
parecia o Fiticero Whateley, só que era muito, muito mais grande. . . .
Exausto, ele fez uma pausa, enquanto todo o grupo de habitantes locais olhava-o numa
perplexidade não totalmente cristalizada em novo terror. Apenas o velho Zebulon Whateley,
que vagamente se lembrava de coisas antigas mas que ficara quieto até então, falou em voz
alta.
- Faiz sete ano – divagou – qu’eu ouvi o Véio Whateley falá que um dia nóis ia ouvi um fio
da Lavinny chamá o nome do pai dele lá no arto da Colina Sentinela. . . .
Mas Joe Osborn interrompeu-o para voltar a perguntar aos homens de Arkham.
- Que era aquilo, intão, e cumo é que o moço Fiticero Whateley chamô ele lá de onde ele
veio?
Armitage escolheu suas palavras com muito cuidado.
- Era, bem, era sobretudo um tipo de força que não pertence à nossa parte do espaço; um tipo
de força que age, cresce e toma forma por outras leis, diferentes daquelas da nossa espécie de
natureza. Não devemos chamar essas coisas do exterior, e somente pessoas muito perversas e
cultos muito perversos é que tentam fazê-lo. Havia alguma coisa dela no próprio Wilbur
Whateley, suficiente para torná-lo um demônio e um monstro precoce e fazer de sua morte
uma cena terrível demais. Vou queimar seu amaldiçoado diário; e, se vocês forem homens
prudentes, dinamitem aquela pedra-altar lá no alto e derrubem todos os círculos de pedras
verticais das outras colinas. Coisas como essa trouxeram os seres de que os Whateley
71
gostavam tanto, os seres a que eles iam dar forma terrestre para exterminar a humanidade e
arrastar a Terra para algum lugar inominável por alguma razão inominável.
Mas no que se refere a essa coisa que nós acabamos de mandar de volta, os Whateley a
criaram para desempenhar um papel terrível nos feitos que estavam por vir. Cresceu rápido e
ficou grande pela mesma razão que Wilbur cresceu rápido e ficou grande, mas o superou
porque tinha uma porção maior de exterioridade nele. Vocês não precisam perguntar como
Wilbur o chamou do espaço. Ele não o chamou. Era seu irmão gêmeo, mas se parecia mais
com o pai do que ele.
O Horror no Museu
Foi apenas curiosidade o que levou Stephen Jones ao Museu Rogers pela primeira vez. Alguém
lhe falara a respeito do estranho lugar subterrâneo na Southwark Street, do outro lado do rio,
onde criaturas de cera muito mais horrendas que as piores efígies do Madame Tussaud
estavam expostas; e num dia de abril ele resolveu entrar para conferir que tipo de
desapontamento iria ter. Curiosamente, não se desapontou. Afinal, alguma coisa diferente e
notável estava ali. Decerto, os velhos lugares-comuns sangüinários não poderiam faltar:
Landru, Doutor Crippen, Madame Demers, Rizzio, Lady Jane Grey, infindáveis vítimas da guerra
e da revolução, e monstros como Gilles de Rais e o Marquês de Sade; mas também outras
coisas que aceleraram sua respiração e o fizeram permanecer até ouvir o toque de fechar. O
homem que tinha montado aquela coleção não poderia ser um charlatão ordinário. Havia
imaginação, e até um toque de genialidade doentia, em algumas das peças.
Mais tarde ele se informou sobre George Rogers. O homem tinha sido da equipe do Tussaud,
mas algum problema ocorrera que resultara em sua demissão. Ouviram-se rumores acerca de
sua sanidade mental e notícias sobre suas loucas formas de adoração secreta; embora,
finalmente, o sucesso de seu próprio museu no porão acabasse embotando o gume de
algumas críticas, ao mesmo tempo em que aguçava a ponta insidiosa de outras. Teratologia e
iconografia do pesadelo eram seus passatempos; e ele teve mesmo a prudência de alojar
discretamente algumas de suas piores efígies numa alcova especial, destinada somente aos
adultos. Foi essa alcova que tanto fascinou Jones. Havia coisas híbridas e disformes que só a
fantasia seria capaz de gerar, moldadas com arte diabólica e coloridas de um modo
horrivelmente realístico.
Algumas eram figuras de mitos bem conhecidos: górgonas, quimeras, dragões, ciclopes e todos
os seus arrepiantes congêneres. Outras tinham sido tiradas de mais obscuros e só
furtivamente murmurados ciclos de lendas subtérreas: o negro e disforme Tsathoggua, o
multitentacular Cthulhu, o trombudo Chaugnar Faugn, e outras indizíveis blasfêmias extraídas
de livros proibidos como o Necronomicon, o Livro de Eibon ou o Unaussprechlichen Kulten, de
Von Junzt. Mas as piores eram criações originais de Rogers, representando formas que
nenhuma narrativa da antigüidade teria alguma vez ousado descrever. Muitas eram repulsivas
paródias das formas da vida orgânica que conhecemos, enquanto outras pareciam ter sido
sacadas de sonhos febris de outros planetas e galáxias. As mais selvagens pintadas por Clark
Ashton Smith podem sugerir algumas; mas nada se compararia ao efeito de pungente,
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repelente terror gerado pelas suas grandes dimensões e delirante acabamento artesanal e
pelas condições de luz diabolicamente perspicazes sob as quais eram exibidas.
Stephen Jones, como um descompromissado connoisseur do bizarro na arte, procurara Rogers
pessoalmente no sombrio escritório e estúdio que ficava atrás do salão de teto abobadado do
museu – uma cripta de aspecto demoníaco, obscuramente iluminada por janelas de correr
poeirentas, dispostas horizontalmente no nível dos paralelepípedos de um pátio escondido.
Nesse lugar é que se fazia a manutenção das imagens, e ali, também, algumas tinham sido
produzidas.
1
Braços de cera, pernas, cabeças e torsos jaziam em grotesca desordem sobre vários bancos, ao
passo que nas prateleiras das estantes se viam perucas, dentes e olhos mortiços de vidro
espalhados indiscriminadamente. Vestimentas de todos os tipos pendiam de ganchos; e numa
dada alcova havia grandes pilhas de cera cor-de-carne e prateleiras repletas de latas de tinta e
pincéis de todos os formatos. No centro do cômodo estava a grande forja para preparar a cera
a ser moldada, sua larga boca ocupada por um vasto container de ferro com alças, ao qual se
ligava um tubo que permitiria despejar a cera derretida com um simples toque de dedo.
Outras coisas, na cripta penumbrosa, seriam mais difíceis de descrever: partes isoladas de
entidades problemáticas cujas formas agrupadas eram fantasmas de delírio. Numa das
extremidades via-se uma porta de madeira maciça, trancada por um cadeado de tamanho
incomum, sobre a qual se achava pintado um símbolo bastante peculiar. Jones, que já tivera
acesso ao temível Necronomicon, estremeceu involuntariamente ao reconhecer aquele
símbolo. Este expositor, refletiu, deve ser alguém de um saber desconcertantemente vasto
acerca dos assuntos dúbios e negros.
Também a palestra de Rogers não o desapontou. Era um homem alto, esguio e assaz
desalinhado, os grandes olhos negros brilhando em combustão em meio a uma face pálida e
mal barbeada. Não se incomodou com o aparecimento de Jones e antes pareceu saudar a
ocasião de poder se abrir com uma pessoa interessada. Sua voz era de uma profundidade e de
uma ressonância singulares, mal dissimulando uma ponta de intensidade represa, que
bordejava mesmo com o fervor. Jones não se espantou de que muitos o tivessem julgado
louco.
A cada nova visita (e as visitas se tornaram habituais com o passar das semanas), Jones
encontraria Rogers mais comunicativo, mais inclinado às confidências. No princípio, tinha
havido rumores de crenças e práticas estranhas, da parte do expositor, e mais tarde esses
rumores se expandiram em histórias, não obstante umas poucas e estranhas fotografias
corroborantes, cuja extravagância roçaria pelo cômico. Foi em junho, numa noite em que
Jones trouxera uma garrafa de bom uísque e pôde conversar mais livremente com seu
anfitrião, que o discurso realmente insano despontou. Antes disso, haviam surgido histórias
delirantes demais – relatos de viagens ao Tibete, ao interior da África, ao deserto da Arábia, ao
vale do Amazonas, ao Alasca e a certas ilhas pouco conhecidas do Pacífico Sul, além de
declarações acerca de ter lido livros monstruosos como os fragmentos Pnacóticos e os cantos
73
Dhol atribuídos ao maligno e inumano Leng -, mas nada disso fora tão inequivocamente insano
quanto o que veio à tona, sob o influxo do uísque, naquele anoitecer de junho.
Mais abertamente, Rogers passou a se gabar de ter encontrado certas coisas na natureza que
ninguém encontrara antes e de ter trazido à luz evidências de tais descobertas. De acordo com
sua arenga, tinha ido mais longe do que qualquer outro na interpretação desses livros
obscuros e primevos que estudara, e fora orientado por eles para certos lugares remotos onde
insólitos remanescentes se ocultavam – remanescentes de éons de ciclos de vidas mais antigos
que a humanidade e em alguns casos conectados com outras dimensões e outros mundos,
mundos e dimensões com os quais a comunicação seria freqüente em dias pré-humanos.
Jones se maravilhava com uma fantasia tão capaz de conjurar semelhantes noções e se
perguntava qual seria a real história mental de Rogers. Teria sido o seu trabalho em meio ao
grotesco mórbido do Madame Tussaud o ponto de partida para suas fugas imaginativas ou se
tratava de uma tendência inata, da qual a escolha de sua ocupação fora apenas uma das
manifestações? De qualquer modo, o trabalho do homem estava como que ligado a essas
noções. Mesmo agora não havia que se equivocar com o curso de suas mais negras sugestões
acerca das monstruosidades de pesadelo ocultas atrás da porta onde se lia “Para adultos
somente”. Infenso ao ridículo, ele tentava sugerir que nem todas essas anormalidades
demoníacas eram artificiais.
Foi mesmo o ceticismo e o espanto de Jones diante dessas declarações irrespondíveis que
acabaram quebrando a crescente cordialidade. Rogers – estava claro – se levava muito a sério,
pois agora se tornava moroso e ressentido, continuando a tolerar Jones somente ao preço de
um incontido impulso de romper o muro de sua incredulidade urbana e complacente. Contos e
sugestões delirantes de ritos e sacrifícios prestados a inomináveis deuses antigos continuavam;
e aqui e ali Rogers mostraria ao hóspede uma das ultrajantes blasfêmias na alcova reservada e
apontaria detalhes difíceis de conciliar mesmo com a mais refinada artesania humana. Jones
prosseguiu, fascinado, com suas visitas, embora soubesse que tinha desmerecido os interesses
de seu anfitrião. Às vezes, tentaria animar Rogers com um fingido assentimento a alguma
sugestão ou asserção maluca, mas o magro expositor raramente se deixaria enganar por essas
táticas.
A tensão atingiu o ápice mais tarde, em setembro. Jones entrou casualmente no museu, num
certo entardecer, e perambulava pelos corredores sombrios, cujo horror lhe era agora familiar,
quando ouviu um som bastante sinistro, proveniente do estúdio de Rogers. Outros o ouviram
também e, nervosamente, saíram em disparada, enquanto os ecos reverberavam através do
grande porão de teto arqueado. Os três assistentes trocaram olhares significativos; um deles,
um sujeito negro e taciturno, com ar de estrangeiro, que sempre servira Rogers como
reparador e desenhista assistente, sorriu de um modo que pareceu intrigar seus colegas e que
tocou profundamente alguma faceta da sensibilidade de Jones. Parecia o ganido ou o uivo de
um cão e era um som que só poderia ser produzido sob condições do mais extremo terror e
agonia combinados. Seu frenesi agudo, angustiado, era impressionante de ouvir e, em toda a
sua grotesca anormalidade, continha algo duplamente aterrorizante. Jones se lembrou de que
não eram permitidos cachorros no museu.
74
Estava prestes a ir até a porta que conduzia ao estúdio, quando o atendente negro o deteve
com uma palavra e um gesto. O Sr. Rogers – o homem disse, numa voz suave e algo acentuada
que não escondia qualquer coisa de apologético e sardônico – tinha saído, e havia ordens
expressas para não deixar que ninguém entrasse no estúdio durante sua ausência. Quanto
àquele uivo, proviera certamente de alguma coisa lá fora, do pátio aos fundos do museu. A
vizinhança estava cheia de vira-latas, cujas brigas costumavam ser chocantemente barulhentas.
Não havia cães em parte alguma do museu. Mas, se o Sr. Jones quisesse ver o Sr. Rogers,
poderia encontrá-lo antes da hora de fechar.
Depois disso, Jones galgou os velhos degraus de pedra até a rua e examinou com curiosidade
os esquálidos arredores. Os edifícios magros, decrépitos – que uma vez foram residências, mas
que agora eram na maioria lojas e armazéns – eram de fato muito antigos. Alguns deles eram
de um tipo que parecia remontar à época dos Tudors, e um fedor algo miasmático pairava
sutilmente por toda a região. Ao lado da casa sombria cujo porão servia de museu havia uma
passagem em arco, não muito alta, cortada por um caminho de pedras escuras, e foi por ela
que Jones enveredou na vaga expectativa de encontrar o pátio dos fundos e ajeitar em sua
mente, de um modo mais confortável, o caso do cachorro. O pátio, obscurecido na fraca luz do
entardecer, estava cercado ao fundo por muros mais feios e intangivelmente ameaçadores do
que as fachadas decadentes do casario vetusto e maligno. Não se via nenhum cachorro. Jones
se perguntou como o resultado de tamanho frenesi poderia ter se desvanecido tão depressa e
tão completamente.
Apesar da declaração do assistente de que nenhum cachorro tinha estado no museu, Jones
examinou com nervosismo as três pequenas janelas do estúdio subterrâneo, estreitos e
horizontais retângulos colados ao piso onde a erva crescia, seus vidros ostensivos a mirar
repulsivamente e sem curiosidade como os olhos de um peixe morto. À sua esquerda um lance
carcomido de degraus conduzia a uma obscura porta de pesadas dobradiças. Um impulso lhe
veio de se abaixar sobre os paralelepípedos úmidos e partidos e espiar lá dentro, na
possibilidade de que os espessos cortinados verdes, movidos por longos cordões que desciam
até um nível alcançável, não poderiam ser afastados. As superfícies externas estavam grossas
de poeira, mas quando as esfregou com o lenço percebeu que não havia nenhuma cortina
obstruindo a visão.
Tão penumbroso era o interior do porão que pouca coisa se podia ver, mas a grotesca
parafernália se deixava lobrigar espectralmente aqui e ali, enquanto Jones observava janela
por janela. Parecia evidente, a princípio, que ninguém estava dentro; no entanto, quando ele
espiou através da janela da extrema direita – aquela mais próxima do caminho de entrada -,
avistou um brilho ao fundo do compartimento que o fez estacar surpreendido. Não havia razão
para que nenhuma luz estivesse ali. Tratava-se de uma parte interna do cômodo, e ele não
podia lembrar-se de haver nenhuma lâmpada elétrica ou a gás perto daquele ponto. Uma
outra olhadela definiu o brilho como sendo um largo retângulo vertical, e um pensamento lhe
ocorreu. Era naquela direção que ele tinha sempre reparado na grande porta de madeira com
o imenso cadeado – a porta que nunca era aberta e sobre a qual se estampava cruamente
aquele pavoroso símbolo críptico proveniente dos documentos fragmentários de uma magia
ancestral e proibida. Devia estar aberta agora, e havia uma luz lá dentro. Toda a sua
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especulação anterior sobre o lugar aonde aquela porta levaria e sobre o que haveria por trás
foi então renovada, com uma intensidade triplamente inquietadora.
Jones perambulou a esmo pela opressiva localidade até próximo das seis horas, quando voltou
ao museu para procurar Rogers. Dificilmente poderia dizer por que ansiava tanto em ver o
homem assim de imediato; contudo devem ter influído nessa disposição algumas suspeitas
subconscientes acerca daquele uivo canino da tarde, terrivelmente difícil de situar, e acerca do
brilho naquela porta perturbadora do interior, que usualmente permanecia fechada com o
maciço cadeado. Os assistentes estavam de saída quando ele chegou, e achou que Orabona, o
negro assistente de aparência estrangeira, o olhava com uma curiosidade sub-reptícia e
contida. Não gostava daquele olhar, mesmo tendo visto o sujeito dirigi-lo ao seu patrão
noutras ocasiões.
O salão de teto abaulado parecia aterrorizante em seu abandono, mas ele o atravessou
velozmente e bateu na porta do escritório e estúdio. A resposta demorou a vir, embora se
ouvissem passos lá dentro. Finalmente, em resposta a uma segunda batida, a fechadura
estalou, e o antigo portal de seis painéis rangeu relutantemente antes de pôr à mostra o vulto
devastado e de olhar febricitante de George Rogers. Logo de saída ficou claro que o expositor
se achava num estado de espírito incomum. Havia uma curiosa mistura de relutância e de real
avidez em sua saudação, e seu modo de falar derivava para extravagâncias do tipo mais
incrível e horripilante.
Antigos deuses sobreviventes – inomináveis sacrifícios – a outra natureza além daquela,
artificial, dos horrores da alcova – toda a lengalenga usual, mas pronunciada num tom de
confiança algo crescente. Obviamente, refletiu Jones, a loucura do pobre o estava dominando
mais e mais. Vez por outra, Rogers lançaria olhadelas furtivas em direção à porta trancada no
final do cômodo ou em direção a um pedaço de áspera aniagem que jazia no chão, não muito
distante dele, sob o qual algum objeto pequeno parecia estar colocado. Jones ficou mais
nervoso à medida que os momentos passavam e começou a se sentir tão hesitante em
mencionar os estranhos eventos da tarde quanto há pouco tinha estado ansioso por fazê-lo.
O tom sepulcralmente grave da voz de Rogers quase se partia sob a excitação de seu delírio
febril.
- Você se lembra – gritou – do que eu lhe contei acerca daquela cidade em ruínas da Indochina
onde os tcho-tchos viviam? Teve de admitir que estive lá, quando viu as fotografias, mesmo se
achasse que eu fiz às escuras aquele nadador oblongo de cera. Se você o tivesse visto
contorcendo-se nos poços subterrâneos como eu vi…
“Bem, este é maior ainda. Nunca lhe falei sobre este, porque desejava trabalhar as últimas
partes antes de fazer qualquer anúncio. Quando você vir os instantâneos, saberá que a
geografia não poderia ter sido falsificada; e eu creio que tenho outro meio de prová-lo. Não se
trata de nenhuma mistura de cera que fiz. Você nunca o viu, porque os experimentos não me
permitiriam mantê-lo em exibição.”
O exibidor olhou de um modo estranho para a porta trancada.
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- Tudo provém daquele longo ritual no oitavo fragmento pnacótico. Quando me dei conta,
vi que poderia ter apenas um significado. Havia coisas no norte antes que a terra de Lomar –
antes que a humanidade existisse; e esta era uma delas. Vasculhamos tudo até o Alasca,
partindo de Fort Morton até Nootak, mas a coisa estava lá, como sabíamos que estaria.
Grandes ruínas ciclópicas, cobrindo acres inteiros. Havia sobrado menos do que esperáramos,
mas após três milhões de anos o que se poderia desejar? E não estavam as lendas esquimós
todas na direção certa? Não podíamos forçar um deles a ir conosco, e tivemos de esquiar de
volta até Nome em busca de americanos. Orabona não tinha utilidade naquele clima, tornou-
se taciturno e odioso.
“Mais tarde lhe contarei do modo como a encontramos. Quando removemos o gelo dos
pilonos da ruína central, a escadaria era exatamente como pensamos que seria. Viam-se ainda
alguns entalhes, e não houve problemas em impedir que os yankees nos seguissem ao
entrarmos. Orabona tremia como uma folha – você nunca suporia, vendo o modos insolentes
que ele exibe por aqui. Ele conhecia o bastante sobre as velhas lendas, para estar devidamente
amedrontado. A luz externa tinha acabado, mas nossos archotes mostravam o bastante. Vimos
os ossos de outros que tinham existido antes de nós éons atrás, quando o clima era quente.
Alguns desses ossos eram de coisas que você não poderia sequer imaginar. No terceiro nível
abaixo, encontramos o trono de marfim, do qual os fragmentos tanto falavam – e posso lhe
dizer que não estava vazio.
“A coisa no trono não se movia, e então percebemos que Ele precisava ser alimentado por
algum sacrifício. Mas não pretendíamos acordá-Lo. Melhor levá-Lo para Londres primeiro.
Orabona e eu nos arrojamos à superfície da grande caixa, mas quando O embalamos, vimos
que não poderíamos subir com Ele os três lances de degraus. Esses degraus não foram
construídos para seres humanos, suas dimensões nos dificultavam. De qualquer modo, era
pesado em excesso. Tivemos de chamar os americanos para O tirarmos de lá. Não estavam
nada animados a entrar no lugar, mas certamente a coisa pior já estava dentro da caixa.
Dissemos a eles que se tratava de uma peça de marfim esculpido, material arqueológico; e, ao
verem o trono entalhado, provavelmente acreditaram em nós. É um espanto que não tenham
suspeitado de um tesouro oculto e que não tenham exigido uma parte. Devem ter contado
estranhas histórias acerca de Nome, mais tarde; embora eu duvide de que tenham retornado
às ruínas, mesmo pelo trono de marfim.”
Rogers fez uma pausa, procurou em sua escrivaninha e tirou um envelope com fotografias de
tamanho grande. Extraindo uma e colocando-a com a face virada para baixo à sua frente,
passou as restantes a Jones. O conjunto era certamente espantoso: colinas cobertas de gelo,
trenós puxados por cães, homens envolvidos em peles, e vastas ruínas decadentes contra um
fundo de neve – ruínas cujos contornos bizarros e cujos blocos enormes de pedra dificilmente
poderiam ser descritos. Uma vista à luz do flash mostrava uma incrível câmara interior com
entalhes selvagens e um trono curioso cujas proporções não poderiam ter sido desenhadas
para um ocupante humano. Os entalhes da alvenaria gigantesca – altas paredes peculiarmente
abobadadas
- eram grandemente simbólicos e envolviam tanto desenhos completamente
desconhecidos quanto certos hieróglifos citados de modo sombrio em legendas
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obscenas. Sobre o trono estampava-se o mesmo símbolo temerário que se via pintado acima
da porta de madeira da oficina. Jones lançou um olhar nervoso àquele portal fechado. Com
toda certeza, Rogers andara por lugares estranhos e vira coisas estranhas. Entretanto aquela
fotografia louca do interior podia ser facilmente uma fraude – tirada de um cenário bem
montado. Não se deve ser tão crédulo. Mas Rogers continuava.
- Bem, embarcamos a caixa num navio que saía de Nome e chegamos a Londres sem
nenhum problema. Foi a primeira vez em que trouxemos alguma coisa com chances de estar
viva. Não o coloquei em exibição, porque havia algo mais importante a fazer por Ele. Precisava
do alimento sacrificial, pois se tratava de um deus. Obviamente eu não poderia Lhe dar o tipo
de sacrifícios que Ele costumaria receber em sua época, pois tais coisas não existem agora.
Mas havia outras que podiam servir. O sangue é a vida, você sabe. Mesmo os lêmures e os
elementais que são mais velhos do que a terra hão de vir quando o sangue de homens ou
animais for oferecido sob as condições corretas.
A expressão na face do narrador estava se tornando mais e mais alarmante e repulsiva, o que
fez Jones estremecer em sua cadeira. Rogers pareceu notar o nervosismo de seu hóspede e
prosseguiu, com um sorriso distintamente mau:
- Foi no último ano que O consegui e desde então tenho tentado ritos e sacrifícios.
Orabona não tem sido de muita ajuda, pois esteve sempre contra a idéia de despertá-Lo. Ele O
odeia, provavelmente porque teme o que Ele poderá vir a significar. Carrega uma pistola
durante todo o tempo, para se proteger – tolo, como se houvesse proteção humana contra
Ele! Se alguma vez o vir sacar a pistola, o estrangularei. Queria que eu O matasse e fizesse uma
efígie d’Ele. Mas já tracei meus planos e estou chegando ao topo, a despeito de todos os
covardes como Orabona e dos malditos céticos de nariz empinado como você, Jones! Já entoei
os cantos e realizei certos sacrifícios, e na semana passada a transição ocorreu. O sacrifício foi
– recebido e apreciado!
Rogers lambia mesmo os lábios, enquanto Jones se mantinha incomodamente rígido. O
expositor parou e se ergueu, cruzando o cômodo em direção ao pedaço de aniagem para o
qual vinha olhando freqüentemente. Abaixando-se, agarrou um dos cantos e voltou a falar:
- Você já riu bastante de minha obra – e agora é hora de conhecer alguns fatos. Orabona
me diz que você ouviu um cachorro ganir por aqui esta tarde. Sabe o que isso significava?
Jones olhava. Apesar de toda a sua curiosidade, teria preferido ir embora sem obter maiores
luzes acerca do ponto que tanto o intrigara. Mas Rogers foi inexorável e começou a levantar o
quadrado de aniagem. Debaixo dele jazia uma massa retorcida e quase disforme que Jones
demorou a classificar. Seria alguma coisa que vivera e que algum agente comprimira, privara
de todo o sangue, espicaçara em mil lugares e costurara num monte mole e desossado de puro
grotesco? Após um instante, Jones compreendeu o que poderia ser. Era o que restara de um
cachorro – um cachorro, talvez de tamanho considerável e de uma cor esbranquiçada. A raça
estava além de qualquer reconhecimento, porque a distorção tinha acontecido de um modo
inominável e ultrajante. Grande parte do pêlo fora queimada por algum tipo de ácido, e a pele
exposta e exangue estava marcada por inumeráveis feridas de incisões circulares. A forma de
tortura necessária para obter semelhantes resultados teria sido inimaginável.
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Eletrizado por uma pura repulsa que ultrapassava seu crescente desgosto, Jones explodiu num
grito:
- Seu sádico maldito, seu demente, você faz uma coisa dessas e ainda ousa vir falar a um
homem decente!
Rogers repôs a aniagem com um ricto maligno de desdém e encarou sem furioso hóspede.
Suas palavras portavam uma calma pouco natural:
- Ora, seu tolo, pensa que eu fiz isto? O que dizer? Não é humano e não tem intenção de
ser. Sacrificar é meramente oferecer. Eu dei a Ele o cachorro. O que aconteceu é obra d’Ele,
não minha. Precisava ser alimentado com a oferta e a tomou à sua própria maneira. Mas
deixe-me mostrar a você com o que Ele se parece.
Enquanto Jones hesitava, o outro foi até sua escrivaninha e apanhou a fotografia que tinha
colocado com a face para baixo. Agora, estendia-a com um olhar curioso. Jones recebeu-a e
examinou-a de um modo quase mecânico. Após um momento, o olhar do visitante se tornou
mais concentrado e mais absorto, pois a força satânica do objeto representado tinha um efeito
quase hipnótico. Certamente, Rogers tinha se superado em modelar o pesadelo feérico que a
câmera capturara. A coisa era obra de um gênio férvido e infernal, e Jones se perguntou como
o público reagiria quando fosse colocada em exibição. Algo tão monstruoso não tinha direito
de existir – provavelmente a mera contemplação do mesmo, depois que fora feito, teria
completado o desajuste na mente de quem o fizera, levando-o a uma adoração com sacrifícios
brutais. Só uma firme sanidade poderia resistir à sugestão insidiosa de que tal blasfêmia era –
ou teria sido -alguma forma exótica e mórbida de vida efetiva.
A coisa na imagem estava agachada ou se balançava sobre o que parecia ser uma engenhosa
reprodução do trono monstruosamente entalhado da outra fotografia curiosa. Descrevê-la
com qualquer palavra comum teria sido impossível, pois o que quer que seja de minimamente
parecido com ela jamais ocorreu à imaginação da humanidade sã. Representava alguma forma
vagamente conectada com os vertebrados deste planeta – embora não se pudesse ter certeza
disso. Sua compleição era ciclópica, já que mesmo agachada sua altura dava quase duas vezes
a de Orabona, o qual aparecia ao seu lado. Examinando atentamente, seria possível traçar suas
aproximações com as feições corporais dos vertebrados superiores.
Havia um torso quase globular, com seis longos e sinuosos membros terminando em patas de
crustáceo. Da extremidade superior protuberava, como uma bolha, um glóbulo subsidiário;
seu triângulo de três olhos fixos de peixe, sua tromba de um pé de comprimento e
evidentemente flexível, e um sistema lateral distendido, semelhante a guelras, sugerindo que
se tratava de uma cabeça. Grande parte do corpo era coberta pelo que a princípio parecia ser
pêlos, mas que a um exame mais atento provava ser uma densa floração de tentáculos negros
e delgados ou filamentos de sucção, cada qual terminando numa boca que sugeriria uma
cabeça de áspide. Sobre a cabeça e abaixo da tromba os tentáculos tendiam a ser mais longos
e grossos, marcados com tiras espiraladas – sugerindo as tradicionais serpentes-madeixas da
Medusa. Insinuar que aquilo podia ter uma expressão parece paradoxal; no entanto Jones
sentiu que aquele triângulo de olhos protuberantes de peixe e aquela tromba pousada
obliquamente exalavam um ar de ódio, voracidade e gritante crueldade, incompreensível aos
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humanos porque se misturava a outras emoções estranhas a este mundo e a este sistema
solar. Nessa anormalidade bestial, refletiu, Rogers devia ter despejado de uma só vez toda a
sua maligna insanidade e todo o seu inaudito gênio escultórico. A coisa era incrível – e, não
obstante, a fotografia provava sua existência.
Rogers interrompeu suas divagações.
- Bem, o que acha d’Ele? Ainda tem dúvidas sobre o que estraçalhou o cachorro e o sugou
inteiro com um milhão de bocas? Precisava de alimento – e precisará de mais. Ele é um deus, e
eu sou o primeiro sacerdote de Sua hierarquia final. Iä! Shub-Niggurath! O Bode com os seus
Mil Jovens!
Jones baixou a fotografia, com desgosto e pena.
- Olhe aqui, Rogers, é melhor abandonar isso. Existem limites, você sabe. É um grande
trabalho, e tudo o mais, mas não faz bem a você. Melhor não o ver mais – deixar que Orabona
o quebre e tentar esquecê-lo. E deixe-me rasgar essa reprodução bestial também.
Com um resmungo, Rogers arrebatou a fotografia e devolveu-a à escrivaninha.
- Idiota – você – e ainda pensa que Ele seja uma fraude! Ainda acha que eu O fiz e ainda
acha que minhas figuras não são mais que cera inerte! Ora, que se dane, você saberá. Não
agora, porque Ele está descansando após o sacrifício, mas mais tarde. Oh, sim, você não
duvidará de Seu poder então.
Enquanto Rogers olhava para a porta interna com o cadeado, Jones apanhou seu chapéu e sua
bengala de um banco próximo.
- Muito bem, Rogers, deixe para mais tarde. Preciso ir agora, mas o procurarei de novo
amanhã ao entardecer. Reflita sobre meu conselho e veja se não faz sentido. Pergunte a
Orabona o que ele acha também.
Rogers arreganhou os dentes de um modo animalesco.
- Precisa ir agora, hein? Com medo, afinal! Com medo, apesar de toda a fanfarronice!
Você diz que as efígies são apenas cera e, no entanto, dá o fora quando começo a provar que
não o são. Você é como os demais que aceitam minha aposta de que não ousam passar uma
noite inteira no museu – chegam valentemente, mas depois de uma hora gritam e esmurram a
porta implorando para sair! Quer que eu consulte Orabona, hein? Vocês dois – sempre contra
mim! Vocês querem barrar o estabelecimento de Seu reino vindouro!
Jones manteve a calma.
- Não, Rogers, não há ninguém contra você. E não estou com medo de suas figuras,
também, até porque admiro sua arte. Mas estamos ambos um pouco excitados esta noite, e
imagino que algum descanso nos fará bem.
Outra vez Rogers barrou a saída de seu hóspede.
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- Sem medo, hein? Então por que está tão aflito em sair? Olhe aqui, você tem ou não tem
coragem de ficar aqui sozinho no escuro? Por que tanta pressa, se você não acredita n’Ele?
Uma nova idéia parecia ter ocorrido a Rogers, e Jones olhou-o atentamente.
- Ora, não tenho nenhuma pressa em especial; mas de que adiantaria eu permanecer
sozinho aqui? O que isso provaria? Minha única objeção é que não é confortável para dormir.
Que benefício traria para qualquer de nós?
Dessa vez, foi a Jones que ocorreu uma idéia. Ele prosseguiu, num tom de conciliação:
- Pense bem, Rogers; apenas lhe perguntei o que seria provado se eu ficasse, quando nós
dois o sabemos. Seria provado que suas efígies são apenas efígies, e que você não devia deixar
sua imaginação fluir como tem fluído ultimamente. Suponha que eu fique. Se eu me mantiver
firme até o amanhecer, você aceitará uma nova visão das coisas, tirará umas férias e deixará
que Orabona destrua essa sua nova coisa? Vamos lá, não é um jogo honesto?
A expressão na face do expositor era difícil de decifrar. Parecia óbvio que ele estivesse
pensando rápido e que sobre um emaranhado de emoções conflitantes o triunfo maligno o
estava dominando. Sua voz soou embargada, quando respondeu:
- Honesto o bastante! Se você se mantiver firme, aceitarei seu conselho. Sairemos para jantar
e depois retornaremos. Trancarei você no cômodo de exibição e irei para casa. Pela manhã,
retornarei antes de Orabona – ele chega meia hora antes dos outros – e verei como você está.
Mas não o tente, a menos que esteja muito seguro de seu ceticismo. Outros fraquejaram – a
oportunidade é sua. E suponho que umas batidas na porta de fora sempre trarão um policial.
Você poderá não gostar, depois de algum tempo – e estará no mesmo edifício, mas não no
mesmo cômodo que Ele.
Quando atravessaram a porta dos fundos em direção ao pátio sombrio, Rogers levou consigo o
pedaço de aniagem com seu repulsivo conteúdo. Próximo ao centro do pátio havia um bueiro,
cuja tampa o expositor ergueu em silêncio e com um acento de arrepiante familiaridade. Com
invólucro e tudo, o fardo desceu ao oblívio de uma cloaca labiríntica. Jones estremeceu e
instintivamente se esquivou ao contato da vampiresca figura ao seu lado, enquanto saíam para
a rua.
Num tácito consentimento mútuo, não jantaram juntos, mas concordaram em se encontrar às
sete diante do museu.
Jones apanhou um táxi e respirou aliviado depois que cruzou a Ponte Waterloo e sentiu que se
aproximava da Strand alegremente iluminada. Satisfez-se com um café frugal e em seguida se
recolheu a casa em Portland Place, para tomar um banho e apanhar algumas coisas.
Perguntou-se, um tanto improficuamente, o que Rogers estaria fazendo. Tinha ouvido que o
homem possuía uma casa vasta e penumbrosa em Walworth Road, repleta de livros obscuros
e proibidos, parafernálias ocultas e imagens de cera que preferia não colocar em exposição.
Orabona, sabia-se, vivia num setor separado dessa mesma casa.
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Às onze, Jones encontrou Rogers à sua espera junto à porta do porão na Southwark Street.
Trocaram escassas palavras, mas cada qual parecia lutar com uma tensão ameaçadora.
Concordaram em que somente o salão de exibição deveria compor o cenário da vigília, e
Rogers não insistiu para que o outro se alojasse na alcova “para adultos” dos supremos
horrores. O expositor, após apagar todas as luzes do estúdio, fechou a porta daquela cripta
com uma das chaves de seu volumoso molho. Sem sequer um aperto de mãos, atravessou a
porta da rua, trancou-a atrás de si e galgou os desgastados degraus que conduziam ao
pavimento lá fora. Enquanto o som de suas passadas esmorecia, Jones se deu conta de que a
longa e tediosa vigília havia começado.
Mais tarde, na treva absoluta do grande porão arqueadado, Jones amaldiçoou sua própria
ingenuidade infantil, que o tinha colocado ali. Durante a primeira meia hora, acendeu e
apagou sua lanterna de bolso a intervalos regulares, mas estar sentado agora num dos bancos
do expositor, em plena escuridão, tornara-se uma tarefa enervante. A cada vez que a lanterna
faiscava, algum objeto mórbido e grotesco aparecia – uma guilhotina, algum inominável
monstro híbrido, uma face barbada, repleta de malignidade, ou um corpo com emanações
vermelhas escorrendo de uma garganta cortada. Jones sabia que nenhuma realidade sinistra
se ligava a essas coisas, mas após a primeira meia hora preferiu não as ver mais.
Por que se dera ao trabalho do provocar aquele maluco ele mal podia dizer. Teria sido muito
mais simples deixá-lo entregue a si mesmo ou ter chamado um especialista. Provavelmente,
refletiu, influenciara-o o sentimento de empatia que um artista tem por outro. Havia suficiente
genialidade em Rogers para torná-lo merecedor de toda oportunidade possível de que alguém
o ajudasse a se livrar de sua crescente mania. Qualquer homem que pudesse imaginar e
construir as coisas incrivelmente vivas que ele tinha produzido não estaria distante de uma
real grandeza. Ele tinha a fantasia de um Sime ou de um Doré reunida ao artesanato minucioso
e científico de um Blatschka. Com efeito, ele dera ao mundo do pesadelo aquilo que os
Blatschkas, com seus modelos de plantas maravilhosamente acurados, feitos com vidro
finamente retorcido e colorido, tinham dado ao mundo da botânica.
A meia-noite as batidas de um relógio distante filtraram-se através da escuridão, e Jones se
sentiu animado pela mensagem de um mundo exterior que ainda vivia. A câmara de teto
arqueado do museu assemelhava-se a um túmulo – perturbadora em sua extrema solidão.
Mesmo um camundongo teria sido uma companhia razoável; e, no entanto, Rogers aventara
que – por “certas razões”, conforme dissera – camundongos ou quaisquer insetos jamais se
aproximaram do lugar. Era bastante curioso, conquanto parecesse verdade. A imobilidade e o
silêncio eram virtualmente totais. Se ao menos alguma coisa produzisse um som! Ele agitou os
pés, e os ecos repercutiram na quietude absoluta. Tossiu, mas havia o que quer que fosse de
zombeteiro nas reverberações em staccato. Ele não podia, reconheceu, simplesmente
conversar consigo mesmo. Isso significaria uma desintegração nervosa. O tempo parecia
escoar com uma lentidão anormal e desconcertante. Ele poderia jurar que horas inteiras
tinham transcorrido desde que acendera a lanterna pela última vez durante a vigília, porém
mal havia batido meia-noite.
Teria desejado que seus sentidos não fossem tão extraordinariamente aguçados. Alguma coisa
na quietude e na escuridão parecia tê-los afiado, de modo que respondiam às mais ligeiras
82
excitações com uma nitidez que dificilmente se consideraria normal. Seus ouvidos pareciam, às
vezes, captar um débil, evasivo sussurro que não se poderia sem erro identificar como sendo o
rumor das ruas esquálidas lá fora; e ele pensou em coisas vagas e irrelevantes, como a música
das esferas ou a vida ignota, inacessível, de dimensões alienígenas pressionando contra a
nossa. Rogers não raro especulava sobre tais coisas.
Os espectros de luz flutuante sobre seus olhos repletos de treva pareciam inclinados a assumir
curiosas simetrias de padrão e movimento. Ele freqüentemente se indagara acerca desses
estranhos raios provenientes do insondável abismo que cintila diante de nós na ausência de
toda iluminação terrestre, mas nunca conhecera nenhum que se comportasse tal como esses
se comportavam. Faltava-lhes a repousante errância das manchas de luz ordinária – como se
sugerindo alguma vontade ou propósito além de qualquer concepção terrestre.
Então veio aquela sugestão de estranhos estremecimentos. Nada estava aberto; no entanto, a
despeito da geral imobilidade do ar, Jones sentiu que a atmosfera não parecia uniformemente
parada. Havia variações intangíveis de pressão – não decididas o suficiente para sugerir o
repugnante patear de entidades desconhecidas. Estava anormalmente frio também. Ele não
gostou de nada disso. O ar pareceu-lhe salgado, como se se houvesse misturado à salinidade
de águas subterrâneas, e havia a vaga impressão de algum odor de inefável mofo. Durante o
dia, ele nunca reparara que as figuras de cera tivessem odor. Mesmo agora aquela impressão
incerta não correspondia ao cheiro que figuras de cera devessem ter. Assemelhava-se mais ao
discreto odor dos espécimes num museu de história natural. Curioso, em vista das declarações
de Rogers de que suas figuras não eram de todo artificiais – de fato, tal declaração é que
levava a imaginação a conjurar a suspeita olfativa. É preciso que se reaja aos excessos da
imaginação – não foram tais coisas que puseram louco o pobre Rogers?
No entanto a extrema solidão do lugar era amedrontadora. Mesmo as badaladas mais
distantes pareciam provir de golfos cósmicos. Isso fez com que Jones se lembrasse daquela
fotografia insana que Rogers lhe mostrara – a câmara horrendamente entalhada com o trono
críptico que o sujeito alegara ser parte de uma ruína de três milhões de anos localizada em
ermos temidos e inacessíveis do Ártico. Talvez Rogers tivesse ido ao Alasca, mas aquela foto
não seria mais que uma encenação. Não havia como ser de outro modo, com todos aqueles
entalhes e aqueles símbolos terríveis. E aquela forma monstruosa, que se supunha ter sido
encontrada sobre o trono – que arroubo de mórbida fantasia! Jones se perguntou a que
distância realmente estaria da insana obra-prima de cera – provavelmente ela estaria
guardada atrás daquela maciça porta com o cadeado, que levava a algum recesso para além da
oficina. Mas de nada serviria conjeturar acerca de uma imagem de cera. Não estava aquela
mesma sala repleta de tais coisas, algumas delas pouco menos horríveis do que o temível
“Ele”? E, para além de um delgado biombo à esquerda, estava a alcova “Para adultos
somente”, com seus inomináveis fantasmas de delírio.
A proximidade das inumeráveis formas de cera começou a bulir mais e mais com os nervos de
Jones à medida que os minutos avançavam. Ele conhecia o museu bem o bastante para não se
sentir livre de suas imagens usuais nem mesmo na escuridão total. Na verdade, a escuridão
tinha o efeito de adicionar às imagens lembradas algumas nuanças imaginativas realmente
perturbadoras. A guilhotina parecia ranger, e a face barbada de Landru – o carrasco de suas
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cinqüenta esposas – se contorcia em expressões de monstruosa ameaça. Da garganta cortada
de Madame Demers parecia emanar um horrível som borbulhante, enquanto a vítima sem
cabeça e pernas de um esquartejador tentava se aproximar mais e mais sobre suas
amputações sangrentas. Jones passou a fechar seus olhos na expectativa de que isso pudesse
afastar as imagens, mas descobriu que era inútil. Além disso, quando ele fechava os olhos os
padrões estranhos e despropositados das manchas de luz se tornavam mais pronunciados e
inquietadores.
Então, subitamente, ele começou a tentar reter as imagens que antes tinha se esforçado para
banir. Tentou retê-las porque estavam dando lugar a outras mais assustadoras. Contra a
vontade, sua memória se pôs a reconstruir as blasfêmias não-humanas que espreitavam pelos
cantos mais obscuros, e essas demoníacas formações híbridas se enroscavam e se sacudiam
em sua direção como se tentando envolvê-lo num círculo. O negro Tsathoggua se converteu,
de uma gárgula semelhante a um sapo, numa linha longa e sinuosa com centenas de pés
rudimentares; e um delgado e flexível abutre noturno estendeu suas asas como se para
avançar e sufocar o vigilante. Jones segurou-se para não gritar. Reconheceu que estava
revertendo aos terrores tradicionais de sua infância e determinou usar sua razão adulta para
conter os fantasmas. Ajudou um pouco, percebeu, piscar a luz novamente. Por medonhas que
fossem as imagens mostradas, não o eram tanto quanto as que sua fantasia sacava da extrema
escuridão.
Mas houve recaídas. Mesmo à luz da lanterna ele não podia deixar de suspeitar que um furtivo
e ligeiro tremor se verificava no biombo que escondia a terrível alcova “para adultos,
somente”. Sabia o que estava ali atrás e estremecia. A imaginação evocava as formas
chocantes do fabuloso Youg-Sothoth – um mero aglomerado de globos iridescentes, mas ainda
assim estupendo em sua maligna sugestividade. Não estaria aquela massa amaldiçoada
flutuando lentamente em sua direção e se chocando contra a divisória em seu caminho? Uma
pequena protuberância na tela à direita sugeria o chifre pontudo de Gnoph-keh, a coisa peluda,
mitológica, dos gelos de Greenland, que às vezes caminhava sobre duas pernas, às vezes sobre
quatro, e às vezes sobre seis. Para tirar isso da cabeça, Jones se arrojou num ímpeto contra a
alcova infernal, com a lanterna acesa à sua frente. Certamente, nenhum de seus receios se
comprovou. No entanto não estariam os longos tentáculos faciais do grande Cthulhu
movendo-se realmente, de um modo lento e insidioso? Sabia que eram flexíveis, mas não
havia notado que o sopro de ar causado pelo seu próprio avanço fosse suficiente para colocá-
los em movimento.
Retornando a seu assento do lado de fora da alcova, fechou os olhos e deixou que as manchas
simétricas de luz fizessem seu estrago. O relógio distante deu uma única batida. Teria sido
apenas uma? Acendeu a lanterna sobre seu relógio e viu que era precisamente uma hora. Seria
penoso, decerto, esperar até de manhã. Rogers só chegaria por volta das oito horas, antes
mesmo de Orabona. Haveria luz lá fora, no porão principal, bem antes que isso ocorresse, mas
nenhum raio penetraria ali. Todas as janelas neste porão tinham sido bloqueadas pelas três
mais pequenas que davam para o pátio. Uma péssima vigília, ao que tudo indicava.
Seus ouvidos captavam maiores alucinações agora – pois ele poderia jurar que estava ouvindo
passadas furtivas e inexoráveis na oficina, para além da porta trancada. Não havia que ficar
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pensando no horror chamado “Ele”, que Rogers se privara de exibir. A coisa era uma
contaminação – havia enlouquecido o seu criador e agora mesmo a sua imagem suscitava
atemorizantes fantasias. Jazia, obviamente, por detrás daquela pesada porta de madeira com
o cadeado. As passadas seriam, certamente, pura imaginação.
Então julgou ter ouvido a chave girar na porta do estúdio. Acendendo a lanterna, nada mais viu
que o vetusto portal de seis folhas em sua posição costumeira. Outra vez apelou para a treva e
fechou seus olhos, mas veio em seguida uma alucinante ilusão de rangido – não a guilhotina,
desta vez, mas o lento e furtivo abrir-se da porta do estúdio. Ele não gritaria. Se gritasse,
estaria perdido. Ouviu-se uma espécie de patear ou de remexer, e estava avançando
lentamente em direção a ele. Precisava manter o controle sobre si mesmo. Não fizera o
mesmo quando o inominável em forma de cérebro tentou acuá-lo? A movimentação parecia
mais próxima, e sua resolução lhe faltava. Ele não gritou, mas apenas gaguejou uma intimação:
- Quem está aí? Quem é você? O que você quer?
Não houve resposta, porém a agitação prosseguia. Jones não soube o que mais temia fazer –
se acender a lanterna ou se ficar quieto no escuro, enquanto a coisa avançava sobre ele. Esta
coisa era diferente – sentiu no fundo – dos outros terrores do anoitecer. Seus dedos e sua
garganta funcionavam espasmodicamente. O silêncio era impossível, e o suspense da
escuridão extrema começava a se revelar a mais intolerável das condições. Outra vez gritou,
histericamente: “Alto! Quem está aí?” – enquanto acendia o facho esclarecedor. Então,
paralisado pelo que viu, deixou cair a lanterna e gritou – não uma só, mas muitas vezes.
Vinha contorcendo-se em sua direção a forma gigantesca e blasfema de algo que não era
inteiramente macaco nem inteiramente um inseto. Sua carapaça pendia solta sobre o corpo, e
o seu rudimento rugoso de cabeça – olhos mortiços – balançava de um lado para o outro como
a de um bêbado. Suas patas dianteiras estavam estendidas, com as garras abertas, e todo o
seu corpo exalava malignidade, a despeito de sua completa ausência de expressão. Após os
gritos e a volta da escuridão, a criatura saltou e, num instante, manteve Jones preso ao chão.
Não houve luta, porque o vigilante desmaiou.
A inconsciência de Jones não deve ter durado mais que um instante, pois a coisa inominável o
estava arrastando através da escuridão quando ele começou a se recobrar. O que o despertou
foram os sons que a coisa emitia – ou, antes, a voz com que os produzia. Era uma voz humana
e algo familiar. Somente uma criatura viva poderia estar por trás daqueles acentos ásperos e
febris que entoavam cantos a algum horror desconhecido.
- Iä! Iä! – uivava. – Estou chegando, ó Rhan-Tegoth, chegando com o alimento. Tu esperaste
muito e te alimentaste mal, mas agora terás o que foi prometido. E ainda mais, pois que, em
vez de Orabona, terás alguém de alto nível que duvidou de ti. Poderás espremê-lo e sugá-lo,
com todas as suas dúvidas, e te fortalecerás assim. E após, entre os homens, ele há de ser
mostrado como um monumento à tua glória. Rhan-Tegoth, infinito e invencível, sou teu
escravo e teu sumo sacerdote. Estás faminto, e te alimentarei. Li o sinal e te conduzi. Com
sangue te nutrirei, e hás de me nutrir com poder. Iä! Shub-Niggurath! O Bode com os Mil
Jovens!
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Num instante, todos os terrores da noite abandonaram Jones como um manto que se despe.
Ele se tornou de novo senhor de sua mente, pois reconhecia o perigo muito terreno e material
com que tinha de lidar. Não era nenhum monstro de fábula, mas um louco perigoso. Era
Rogers, vestindo alguma fantasia de pesadelo produzida por seu próprio engenho insano, e
prestes a realizar algum apavorante sacrifício ao deus-demônio que ele mesmo moldara na
cera. Claramente, ele devia ter penetrado na oficina pela porta do pátio, envergado seu
disfarce e então avançado para sua vítima acuada e alquebrada pelo medo. Sua força era
prodigiosa, e se ele devia ser impedido, cumpria agir rapidamente. Contando com a confiança
do louco em sua inconsciência, Jones decidiu surpreendê-lo, aproveitando-se de um
relaxamento do abraço. O contato com alguma mobília mostrou-lhe que estava cruzando o
cômodo em direção às trevas do estúdio.
Com a força que nos concede o medo mortal, Jones deu um súbito arranco, saindo da posição
meio deitada na qual estava sendo arrastado. Por um instante, viu-se livre das mãos do
maníaco atônito, e num outro instante um golpe de sorte na escuridão colocou suas próprias
mãos na goela oculta do perseguidor. Simultaneamente, Rogers o agarrou de novo, e sem
maiores avisos estavam os dois atracados numa luta desesperada de vida e morte. O preparo
atlético de Jones, sem sombra de dúvida, era sua única salvação; pois seu louco adversário,
livre de qualquer inibição com respeito a jogo limpo, decência ou mesmo autopreservação, era
uma máquina de selvagem destruição tão formidável quanto qualquer lobo ou pantera.
Urros guturais pontuavam às vezes a horrível peleja na treva. Sangue jorrava, vestes rasgavam-
se, e Jones por fim sentiu de fato, entre os dedos, a garganta do maníaco, despida de sua
máscara espectral. Não disse palavra alguma, mas aplicou cada fragmento de sua energia na
defesa de sua vida. Rogers chutava, esmurrava, cabeceava, mordia, arranhava e se debatia – e
no entanto encontrava forças para emitir algumas frases ocasionais. A maior parte do que dizia
aflorava num jargão repleto de referências ao “Ele” ou “Rhan-Tegoth”, e para os nervos
desgastados de Jones era como se os gritos ecoassem rosnados e latidos demoníacos a uma
infinita distância. Por último, estavam rolando no chão, revirando bancos ou se chocando
contra as paredes e as fundações de tijolos da fornalha central. Próximo ao fim, Jones não
estava certo de poder se salvar, mas o acaso interveio a seu favor. Um golpe de seu joelho
contra o peito de Rogers produziu um relaxamento geral, e no momento seguinte ele
reconheceu que tinha vencido.
Embora mal pudesse agüentar-se, Jones se levantou e apalpou as paredes à procura do
interruptor – pois sua lanterna sumira juntamente com grande parte de suas roupas. Enquanto
avançava, arrastou consigo seu oponente inerte, temendo um ataque súbito quando o mesmo
se recobrasse. Encontrando a caixa dos interruptores, remexeu-a até que deparou com o
acionador direito. Então, quando a caótica desordem do estúdio explodiu numa súbita
cintilação, pôs-se a amarrar Rogers com cordas e correias que facilmente descobriu à sua volta.
O disfarce do sujeito
- ou o que restara dele – parecia feito de uma espécie estranhíssima de couro. Por alguma
razão, a carne de Jones se retraiu ao tocá-lo; e parecia exalar-se daquilo um odor ferruginoso e
alienígena. Por baixo, entre as roupas normais, estava o molho de chaves de Rogers, que o
exaltado vencedor arrebatou como seu passaporte final para a liberdade. As cortinas sobre as
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pequenas janelas de correr estavam todas cuidadosamente cerradas, e ele as deixou ficar
assim.
Lavando o sangue da batalha com uma bacia conveniente, Jones vestiu as mais ordinárias -
sempre ruins – roupas que conseguiu encontrar nos cabides do vestuário. Experimentando a
porta para o pátio, descobriu que a tranca não exigia uma chave pelo lado de dentro. No
entanto ele conservou consigo o molho de chaves, de modo a poder voltar com ajuda – pois,
obviamente, o melhor a fazer era chamar um alienista. Não havia telefone no museu, mas não
seria demorado encontrar um restaurante noturno ou uma farmácia que dispusesse de um.
Tinha quase aberto a porta, quando uma torrente de repulsivas imprecações, proveniente do
cômodo, lhe informou que Rogers – cujos ferimentos mais visíveis se restringiam a um sulco
longo e profundo na face esquerda – recobrara a consciência.
- Tolo! Filhote de Noth-Yidik e eflúvio de K’thun! Filho dos cães que uivam no maelstrom
de Azathoth! Você teria sido sagrado e imortal, e agora está traindo a Ele e ao Seu sacerdote!
Mas cuidado – pois Ele tem fome! Teria sido Orabona – aquele maldito cão traiçoeiro, sempre
pronto a me trair a mim e a Ele – mas darei a honra a você. Agora, ambos precisamos ter
cuidado, pois Ele não é gentil com seu sacerdote.
“Iä! Iä! A vingança está próxima! Sabe que você teria se tornado imortal? Olhe para a fornalha!
Há um fogo pronto a ser aceso, e existe cera no caldeirão. Eu teria feito com você o que fiz
com outras criaturas outrora viventes. Eh! Você, que declarou serem apenas cera todas as
minhas efígies, teria se tornado uma efígie de cera também! A fornalha estava preparada!
Depois que Ele se houvesse nutrido, e você tivesse ficado como aquele cachorro que lhe
mostrei, eu teria tornado imortais os seus restos compactados e perfurados! A cera seria o
bastante. Não viu como sou um grande artista? Cera sobre cada poro – cera sobre cada
polegada de você – Iä! Iä! E para todo o sempre o mundo teria olhado para a sua carcassa
mofina e se espantado de que eu pudesse imaginar e produzir semelhante coisa! Eh! e
Orabona teria sido o próximo, e outros depois dele -e assim cresceria minha família de cera!
“Cão – ainda acha que fiz todas as efígies? Por que não dizer: preservei? Reconhece agora os
estranhos lugares pelos quais andei e as coisas estranhas que trouxe comigo. Covarde – você
nunca teria peito para encarar o rastejante dimensional cuja pele eu vesti para assustá-lo – a
mera visão de sua forma viva, ou sequer um pensamento dela, o mataria de medo num
instante! Iä! Iä! Ele aguarda faminto pelo sangue que é vida!”
Rogers, encostado à parede, oscilava para a frente e para trás em suas amarras.
- Ouça, Jones, se eu o deixar ir, você me deixará ir também? É preciso que Seu sumo
sacerdote cuide d’Ele. Orabona será suficiente para mantê-Lo vivo. Podia ter sido você, mas
você rejeitou a honra. Não o importunarei mais. Deixe-me ir, e compartilharei com você o
poder que Ele me trará. Iä! Iä! Grande é Rhan-Tegoth! Deixe-me ir! Deixe-me ir! Ele está
morrendo de fome lá embaixo, atrás daquela porta, e se Ele morrer os Antigos nunca mais
retornarão. Eh! Eh! Deixe- me ir!
Jones apenas balançou a cabeça, embora a enormidade das idéias do expositor o revoltasse.
Rogers, olhando agora alucinadamente para a porta de madeira com o cadeado, batia mais e
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mais com a cabeça contra a parede de tijolos e esmurrava com os cotovelos bem atados. Jones
temeu que ele se machucasse, e avançou para amarrá-lo um pouco mais firmemente a algum
objeto estacionário. Encolhendo-se, Rogers se desviou dele e começou a emitir uma série de
uivos frenéticos, cuja inumanidade extrema e monstruosa era estarrecedora e cujo volume
agudo era quase inacreditável. Parecia impossível que uma garganta humana produzisse
ruídos tão altos e cortantes, e Jones sentiu que se continuassem não haveria necessidade de
pedir ajuda por telefone. Não demoraria para que um policial viesse investigar, mesmo
admitindo-se que não havia vizinhos para ouvir entre os armazéns daquele distrito deserto.
Aquela criatura toda amarrada, que tinha começado a se contorcer ao longo do piso, agora
alcançava a porta com o cadeado e batia trovejantemente com a cabeça contra ela. Jones
receou amarrá-lo ainda mais e desejou que a luta o tivesse deixado exausto o suficiente. Essa
seqüência violenta dava-lhe horrivelmente nos nervos, e ele começou a sentir o retorno das
indescritíveis inquietações que havia sentido no escuro. Tudo o que presenciara acerca de
Rogers e do museu era tão infernalmente mórbido e sugestivo de negras visões de além vida!
Era inquietador pensar na obra-prima em cera, de genialidade anormal, que naquele momento
deveria estar à espreita, quase à mão, na escuridão que havia do outro lado da pesada porta
com o cadeado.
Então, alguma coisa aconteceu que trouxe mais um arrepio à espinha de Jones e fez com que
cada pêlo de seu corpo – mesmo os suaves tufos nos dorsos das mãos – se arrepiasse com um
vago medo que não permitia classificação. Rogers, subitamente, parara de gritar e de bater
com a cabeça contra a maciça porta de madeira e lutava para se assentar, a cabeça pendida
para um lado como se ouvindo alguma coisa com atenção. Inopinadamente, um sorriso de
diabólico triunfo se estampou em seu rosto, e ele começou a falar de um modo ininteligível
outra vez -agora num sussurro grave que contrastava estranhamente como seu anterior uivo
estentórico.
- Escute, tolo! Escute bem! Ele me ouviu e está vindo. Pode ouvi-Lo chapinhar para fora
de seu tanque lá no fundo da eclusa? Eu a fiz bem funda, porque não havia nada melhor para
Ele. Trata-se de um anfíbio, sabe? – você viu as guelras na fotografia. Chegou à terra vindo da
plúmbea Yuggoth, onde as cidades jazem no fundo de um mar aquecido. Não pode ficar de pé
ali – alto demais -, tem de se sentar ou de se agachar. Dê-me as chaves – precisamos deixá-Lo
sair e nos ajoelharmos diante dele. Então sairemos à procura de um cão ou de um gato – ou
quem sabe de algum bêbado – para lhe dar o sustento de que Ele precisa!
Não foi tanto o que o doido dissera, mas o modo como o dissera, que atingiu Jones tão
profundamente. A confiança e a sinceridade extremas, insanas, que havia naquele sussurro
louco eram lamentavelmente contagiantes. A imaginação, tremendo estímulo, acharia uma
ameaça ativa naquela demoníaca figura de cera que espreitava oculta para além das grossas
tábuas. Mirando a porta com inusitado fascínio, Jones reparou que ela exibia várias rachaduras,
conquanto nenhum sinal de tratamento violento era visível daquele lado. Ele se perguntou que
dimensões teria o cômodo ou despensa por trás dela e de que modo estaria colocada a figura
de cera. A idéia do maníaco de um tanque com uma eclusa era tão conjeturável quanto todas
as suas outras fabulações.
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Logo, num instante terrível, Jones não teve forças sequer para respirar. A correia de couro que
segurava para dar o último laço em Rogers escorregou de suas mãos, e um espasmo de tremor
convulsionou-o da cabeça aos pés. Devia saber que o lugar o levaria à loucura, como fizera
com Rogers – e agora estava louco. Estava louco, pois agora sofria alucinações mais esquisitas
do que quaisquer outras que o tinham assaltado naquela noite. O louco convocava-o a ouvir o
chapinhar de um monstro mítico no tanque que estava para além da porta – e agora, Deus
poderoso, ele o ouvia!
Rogers percebeu o espasmo de horror que se estampou no rosto de Jones e o transformou
numa máscara de expectativa e de medo. Casquinou:
- Afinal, tolo, acredita! Afinal você sabe! Ouve-O, e Ele vem! Dê-me as chaves, tolo -
precisamos fazer a reverência e Lhe servir!
Mas Jones estava longe de prestar atenção em quaisquer palavras humanas, loucas ou sãs.
Uma paralisia fóbica o colocou imóvel e semi-inconsciente, imagens selvagens precipitando-se
de modo fantasmagórico em sua imaginação. Ouviu-se um chapinhar. Ouviu-se um patear ou
um bulício, como o de grandes patas úmidas contra uma superfície sólida. Alguma coisa se
aproximava. Suas narinas foram invadidas por um fedor, proveniente das frinchas daquela
porta de pesadelo, ao mesmo tempo semelhante e distinto daquele que emana das jaulas dos
mamíferos nos jardins zoológicos do Regent’s Park.
Ele não sabia mais se Rogers estava falando ou não. Tudo o que fosse real se desvanecera, e
ele era uma estátua ob sedada por sonhos e alucinações tão antinaturais que se tornavam
quase objetivas e independentes dele. Pensou ter ouvido um farejar ou um grunhir
proveniente do abismo para além da porta; quando um súbito ruído, como o de um latido ou
de uma trombeta, assaltou seus ouvidos, não teve certeza se teria vindo do maníaco amarrado,
cuja imagem dançava diante de sua vista abalada. A fotografia daquela maldita coisa oculta de
cera insistia em flutuar através de sua consciência. Tal coisa não tinha o direito de existir. Não
o havia deixado louco?
Mesmo enquanto refletia, uma nova evidência de loucura lhe ocorreu. Alguma coisa, pensou,
estava bulindo com a tranca da pesada porta com o cadeado. Estava batendo e arranhando e
empurrando as grandes tábuas. Ouvia-se um martelar contra a madeira resistente, que se
tornou mais e mais pronunciado. A fedentina era horrível. E agora o assalto contra aquela
porta pelo lado de dentro se tornava uma saraivada maligna, determinada, como os ribombos
num campo de batalha. Houve um ominoso estrondo – um despedaçamento – uma onda de
fedor – uma tábua que caía – uma pata negra terminando numa pinça de caranguejo…
- Socorro! Socorro! Deus me ajude!… Aaaaaaa!.
Com grande esforço Jones consegue, hoje em dia, recordar-se de que sua paralisia fóbica
explodiu na liberação de um súbito frenesi de fuga automática. Ora, ele provavelmente viveu
uma daquelas fugas loucas e selvagens dos mais loucos pesadelos, pois parece que atravessou
num ímpeto a cripta em desordem, de um único salto, escancarou a porta de saída, que se
fechou e se trancou às suas costas com um estampido, disparou escada acima, saltando de
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três em três degraus, e cruzou alucinada e desorientadamente o pátio calçado de pedras em
direção às ruas esquálidas de Southwark.
Aqui a memória pára. Jones não sabe como chegou a casa, e não há evidências de que tenha
apanhado um táxi. Provavelmente, venceu todo o trajeto guiado por um instinto cego –
através da Ponte Waterloo, ao longo do Strand e de Charing Cross, até as alturas de Haymarket
e Regent Street e até sua própria vizinhança. Ele ainda usava a inusitada barafunda das roupas
do museu, quando se tornou consciente o bastante para chamar o médico.
Uma semana mais tarde, os especialistas em nervos permitiram que ele deixasse o leito e
saísse ao ar livre.
Mas ele não contou muita coisa aos especialistas. Sobre toda a sua experiência pendia um véu
de loucura e pesadelo, e ele concluiu que o silêncio era a melhor opção. Quando se levantou,
perscrutou atentamente todos os papéis que se acumularam desde aquela noite medonha,
mas não encontrou nenhuma referência a nada de estranho no museu. O quanto, afinal, de
tudo aquilo tinha sido realidade? Onde terminava a realidade e começava o sonho mórbido?
Teria sua mente se despedaçado naquela escura câmara de exibição, e teria sido toda a luta
com Rogers apenas uma fantasmagoria da febre? Teria ajudado em sua recuperação se ele
conseguisse assentar alguns desses pontos enlouquecedores. Ele devia ter visto aquela maldita
fotografia da imagem de cera denominada “Ele”, pois cérebro algum senão o de Rogers seria
capaz de conceber semelhante blasfêmia.
Duas semanas transcorreram antes que ele tivesse coragem de retornar a Southwark Street.
Partiu durante uma manhã, quando o maior volume de atividade sã estava ocorrendo
naqueles antigos arredores de lojas e armazéns. A placa do museu ainda estava lá, e quando se
aproximou viu que o lugar ainda estava aberto. O porteiro fez uma aceno de aprazível
reconhecimento, enquanto ele cobrava coragem para entrar, e na câmara arqueada lá
embaixo um assistente tocou animadamente no quepe. Talvez tudo tivesse sido apenas um
sonho. Ousaria bater na porta do estúdio e procurar por Rogers?
Então Orabona avançou para cumprimentá-lo. Sua negra cara lambida tinha algo de sardônico,
mas Jones sentiu que não era inamistosa. O outro falou, com uma ponta de sotaque:
- Bom dia, Sr. Jones. Faz tempo que não o vemos por aqui. Deseja ver o Sr. Rogers?
Lamento, mas ele não se encontra. Foi chamado para algum negócio na América e teve de ir.
Sim, foi bem repentino. Estou no comando agora, aqui e na casa. Procuro manter o alto padrão
do Sr. Rogers -até que ele volte.
O estrangeiro sorriu – talvez apenas por afabilidade. Jones mal sabia o que responder, mas se
esforçou para balbuciar algumas perguntas sobre o dia seguinte à sua última visita. Orabona
pareceu interessado nas perguntas, e teve o maior cuidado ao responder.
- Oh, sim, Sr. Jones, o vinte e oito do mês passado. Lembro-me dele por muitas razões.
Pela manhã – antes que o Sr. Rogers chegasse, você compreende? – encontrei o estúdio numa
verdadeira barafunda. Havia muita – limpeza – por fazer. O trabalho da noite anterior durara
até tarde, veja você. Um importante espécime novo, dado o seu processo secundário de
cozimento. Assumi todo o controle quando cheguei.
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“Era um espécime difícil de preparar – mas, naturalmente, o Sr. Rogers havia me ensinado o
bastante. Ele é, como se sabe, um grande artista. Quando chegou, ajudou-me a completar o
espécime – ajudou-me bem materialmente, lhe asseguro – mas saiu logo, sem sequer
cumprimentar os homens. Como lhe disse, foi chamado de repente. Havia importantes reações
químicas envolvidas. Faziam muito barulho – de fato, algumas pessoas lá fora imaginam ter
ouvido vários tiros de pistola – uma idéia bem peculiar!
“Quanto ao novo espécime – é um assunto lamentável. Trata-se de uma grande obra-prima,
desenhada e executada, você compreende, pelo Sr. Rogers. Ele verá o que aconteceu quando
retornar.”
Outra vez Orabona sorriu.
A polícia, você sabe. Nós o colocamos em exibição há uma semana, e aconteceram dois ou três
desmaios. Um pobre coitado teve um ataque epilético diante dele. Compreende, um
pouquinho – mais forte – que o resto. Maior, por causa de uma coisa. Naturalmente, estava na
alcova ‘para adultos’. No dia seguinte, dois homens da Scotland Yard deram uma olhada e
disseram que era mórbido demais para ser exibido. Disseram que tínhamos de removê-lo. Foi
um grande embaraço – tamanha obra-prima de arte – mas eu não me senti com autoridade
para recorrer à justiça na ausência do Sr. Rogers. Ele detestaria semelhante publicidade, com a
polícia envolvida mas quando retornar – quando retornar…
Por uma ou outra razão, Jones sentiu uma onda crescente de desconforto e repulsa. Mas
Orabona prosseguia:
- Você é um conhecedor, Sr. Jones. Estou certo de que não violo nenhuma lei oferecendo-
lhe uma demonstração particular. Pode ser que – de acordo, evidentemente, com a vontade
do Sr. Rogers – venhamos a destruir o espécime algum dia – mas seria um crime.
Jones teve um forte ímpeto de recusar ver a coisa e fugir precipitadamente, mas Orabona já o
conduzia pelo braço com um entusiasmo de artista. A alcova “adulta”, apinhada de
inomináveis horrores, não tinha visitantes. Num canto distante, um largo nicho fora coberto
por uma cortina, e em direção a ele é que avançou o sorridente auxiliar.
Você deve saber, Sr. Jones, que o título deste espécime é “O Sacrifício a Rhan-Tegoth”. Jones
ficou violentamente abalado, mas Orabona não pareceu notar.
O deus colossal e informe é uma personagem de certas lendas obscuras que o Sr. Rogers tinha
estudado. Tudo bobagem, com certeza, como você tantas vezes asseverou ao Sr. Rogers.
Supõe-se que tenha vindo do espaço sideral e que tenha vivido no Ártico há três milhões de
anos. Tratava seus sacrifícios de modo bastante peculiar e horrível, como verá. O Sr. Rogers o
realizou com muita vivacidade e imaginação – mesmo quanto à face da vítima.
Em meio a violentos tremores, Jones se agarrou ao corrimão de bronze em frente ao nicho
velado. Esteve mesmo para erguer a mão e impedir Orabona quando viu a cortina deslizar,
mas um conflituoso impulso o deteve. O estrangeiro sorria triunfalmente.
- Contemple!
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Jones sentiu-se girar, mesmo agarrado ao corrimão.
- Deus! – Deus do céu!
Com bons dez pés de altura, a despeito de sua postura agachada, rastejante, expressiva de
infinita malignidade cósmica, uma monstruosidade de horror inacreditável aparecia saindo de
um trono ciclópico de marfim coberto de relevos grotescos. No par central de suas seis pernas,
segurava uma coisa amassada, esmagada, distorcida e exangue, perfurada por um milhão de
picadelas e em alguns pontos corroída por algum ácido pungente. Somente a macilenta cabeça
da vítima, pendendo invertida num dos lados, dava mostras de representar qualquer coisa de
humana.
O monstro em si dispensaria qualquer título, para quem tivesse visto certa fotografia infernal.
Aquela desgraçada imagem tinha sido mais que fiel e no entanto não podia comportar todo o
horror que havia no gigantesco objeto real. O torso globular – a sugestão de cabeça algo
semelhante a uma bolha – a tromba de um pé de comprimento – as guelras salientes – a
monstruosa penugem das ventosas em forma de áspide – os seis membros sinuosos com suas
patas negras e pinças de caranguejo – Deus! a familiaridade da pata negra terminando numa
pinça de caranguejo!…
O sorriso de Orabona era simplesmente hediondo. Jones engasgou e fitou aquela exibição
medonha com um fascínio crescente que o perturbou e o deixou perplexo. Que irrevelado
horror o estava prendendo e forçando a olhar por mais um pouco e a procurar por detalhes?
Aquilo tinha enlouquecido Rogers… Rogers, o artista supremo… disse que não eram artificiais…
Então ele localizou a coisa que o atraía. Era a cabeça pendente da macilenta vítima de cera e
alguma coisa que ela implicava. Essa cabeça não era inteiramente destituída de uma face, e
aquela face era familiar. Parecia-se com a face enlouquecida do pobre Rogers. Jones examinou
melhor, mal sabendo por que o fazia. Não era natural que um egotista moldasse suas próprias
feições em sua obra-prima? Haveria alguma coisa mais que a visão subconsciente tivesse
capturado e ultrapassado em infinito terror?
A cera da face ressequida tinha sido manuseada com inigualável destreza. Aquelas picadas -
quão perfeitamente reproduziam a miríade de feridas de algum modo infligidas àquele pobre
cão! Mas havia algo mais. Na bochecha esquerda podia-se vislumbrar uma irregularidade que
parecia transcender o esquema geral – como se o escultor tivesse procurado cobrir um defeito
de sua primeira modelagem. Quanto mais Jones olhava para ela, mais ela o terrificava
misteriosamente – e então, de súbito, ele se lembrou de uma circunstância que levou seu
horror ao ápice. Aquela noite de abominação – a luta – o louco amarrado – e o corte longo e
profundo na face esquerda do verdadeiro Rogers vivo…
Jones, abandonando o desesperado apoio do corrimão, tombou num desmaio total. Orabona
continuava a sorrir.

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