O Cristianismo
Conforme a História, é no deserto que ostensivamente aparece a crença no Deus único, a idéia-mãe de onde devia sair o Cristianismo. Através das solidões pedregosas do Sinai, Moisés, o iniciado do Egito, guiava para a terra prometida o povo por cujo intermédio o pensamento monoteísta, até então confinado nos Mistérios, ia entrar no grande movimento religioso e espalhar-se pelo mundo.
Ao povo de Israel coube um papel considerável. Sua história é como um traço de união que liga o Oriente ao Ocidente, a ciência secreta dos templos à religião vulgarizada. Apesar das suas desordens e das suas máculas, a despeito desse sombrio exclusivismo que é uma das faces do seu caráter, ele tem o mérito de haver adotado, até enraizar-se em si, esse dogma da unidade de Deus, cujas conseqüências ultrapassaram as suas vistas, preparando a fusão dos povos em uma família universal, debaixo de um mesmo Pai e sob uma só Lei.
Essa perspectiva, grandiosa e extensa, somente foi reconhecida ou pressentida pelos profetas que precederam a vinda do Cristo. Mas esse ideal oculto, prosseguindo, transformado pelo Filho de Maria, dele recebeu radiante esplendor, também comunicado às nações pagãs pelos seus discípulos. A dispersão dos judeus ainda mais auxiliou a sua difusão. Segundo sua marcha através das civilizações decaídas e das vicissitudes dos tempos, ele ficará gravado em traços indeléveis na consciência da Humanidade.
Um pouco antes da era atual, à proporção que o poder romano cresce e se estende, vê-se a doutrina secreta recuar, perder a sua autoridade. São raros os verdadeiros iniciados. O pensamento se materializa, os espíritos se corrompem. A Índia fica como adormecida num sonho: extingue-se a lâmpada dos santuários egípcios e a Grécia, assenhoreada pelos retóricos e pelos sofistas, insulta os sábios, proscreve os filósofos, profana os Mistérios. Os oráculos ficam mudos. A superstição e a idolatria invadem os templos. E a orgia romana se desencadeia pelo mundo, com suas saturnais, sua luxúria desenfreada, seus inebriamentos bestiais. Do alto do Capitólio, a prostituta saciada domina povos e reis. César, imperador e deus, se entroniza numa apoteose ensangüentada!
Entretanto, nas margens do Mar Morto, alguns homens conservam no recesso a tradição dos profetas e o segredo da pura doutrina. Os essênios, grupo de iniciados cujas colônias se estendem até o vale do Nilo, abertamente se entregam ao exercício da medicina, porém o seu fim real é mais elevado: consiste em ensinar, a um pequeno número de adeptos, as leis superiores do Universo e da vida. Sua doutrina é quase idêntica à de Pitágoras. Admitem a preexistência e as vidas sucessivas da alma; prestam a Deus o culto do espírito.
Nos essênios, como entre os sacerdotes de Mênfis, a iniciação é graduada e requer vários anos de preparo. Seus costumes são irrepreensíveis; passam a vida no estudo e na contemplação, longe das agitações políticas, longe dos enredos do sacerdócio ávido e invejoso.
Foi evidentemente entre eles que Jesus passou os anos que precederam o seu apostolado, anos sobre os quais os Evangelhos guardam um silêncio absoluto. Tudo o indica: a identidade dos seus intuitos com os dos essênios, o auxílio que estes lhe prestaram em várias circunstâncias, a hospitalidade gratuita que, a título de adepto, ele recebia, e a fusão final da ordem com os primeiros cristãos, fusão de que saiu o Cristianismo esotérico.
Mas, na falta de iniciação superior, o Cristo possuía uma alma bastante vasta, bem superabundante de luz e de amor, para nela sorver os elementos da sua missão. Jamais a Terra viu passar maior Espírito. Uma serenidade celeste envolvia-lhe a fronte. Nele se uniam todas as perfeições para formarem um tipo de pureza ideal, de inefável bondade.
Há em seu coração imensa piedade pelos humildes, pelos deserdados. Todas as dores humanas, todos os gemidos, todas as misérias encontram nele um eco. Para acalmar esses males, para secar essas lágrimas, para consolar, para curar, para salvar, ele irá ao sacrifício de a própria vida oferecer em holocausto a fim de reerguer a Humanidade. Quando, pálido, se dirige para o Calvário e é pregado ao madeiro infamante, encontra ainda em sua agonia a força de orar por seus carrascos e de pronunciar estas palavras que nenhum impulso de ternura ultrapassará jamais:
“Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem!” Entre os grandes missionários, o Cristo, o primeiro de todos, comunicou às multidões as verdades que até então tinham sido o privilégio de pequeno número. Para ele, o ensino oculto tornava-se acessível aos mais humildes, senão pela inteligência ao menos pelo coração, e lhes oferecia esse ensino sob formas que o mundo não tinha conhecido, com uma potência de amor, uma doçura penetrante e uma fé comunicativa que faziam fundir os gelos do cepticismo, eletrizar os ouvintes e arrastá-los após si.
O que ele chamava “pregar o Evangelho do reino dos céus aos simples” era pôr ao alcance de todos o conhecimento da imortalidade e o do Pai comum. Os tesouros intelectuais, que os adeptos avaros só distribuíam com prudência, o Cristo os espalhava pela grande família humana, por esses milhões de seres, curvados sobre a Terra, que nada sabiam do destino e que esperavam, na incerteza e no sofrimento, a palavra nova que os devia consolar e reanimar. Essa palavra, esse ensino, ele distribuiu sem contar e lhes deu a consagração do seu suplício e da sua morte. A cruz, esse símbolo antigo dos iniciados, que se encontra em todos os templos do Egito e da Índia, tornou-se, pelo sacrifício de Jesus, o sinal da elevação da Humanidade, tirada do abismo das trevas e das paixões inferiores, para ter enfim acesso à vida eterna, à vida das almas regeneradas.
O sermão da montanha condensa e resume o ensino popular de Jesus. Aí se mostra a lei moral com todas as suas conseqüências; nele os homens aprendem que as qualidades brilhantes não fazem sua elevação nem sua felicidade, mas que só poderão isto conseguir pelas virtudes modestas e ocultas – a Humildade, a Bondade, a Caridade:
“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque é para eles o reino dos céus. – Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. – Bem-aventurados os que têm fome de Justiça, porque serão saciados. – Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. – Bem-aventurados os que têm o coração puro, porque verão a Deus.”
Assim se exprime Jesus. Suas palavras patenteiam ao homem perspectivas inesperadas. É no mais recôndito da alma que está a origem das alegrias futuras: “O reino dos céus está dentro de vós!” E cada um consegue realizá-lo pela subjugação dos sentidos, pelo perdão das injúrias e pelo amor ao próximo.
Para Jesus, no amor encerra-se toda a religião e toda a filosofia.
“Amai vossos inimigos; fazei bem àqueles que vos perseguem e caluniam, a fim de que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus, que faz com que o Sol tanto se levante para os bons como para os maus; que faz chover sobre os justos e injustos. Porque, se só amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis vós?”
Esse amor é Deus mesmo quem no-lo exemplifica, pois os seus braços estão sempre abertos ao arrependido. É o que se depreende das parábolas do filho pródigo e da ovelha desgarrada:
“Assim vosso Pai que está nos céus não quer que pereça um só de seus filhos.”
Não será isto a negação do inferno, cuja idéia se atribuiu a Jesus?
Se o Cristo mostra algum rigor e fala com veemência, é a esses fariseus hipócritas que torcem a lei moral, entregando-se às práticas minuciosas de devoção.
A seus olhos é mais louvável o samaritano cismático do que o sacerdote e o levita que desdenham socorrer um ferido. Ele desaprova as manifestações do culto exterior e levanta-se contra esses sacerdotes:
“Cegos condutores de cegos, homens de rapina e de corrupção que, a pretexto de longas preces, devoram os bens das viúvas e dos órfãos.”
Aos devotos que acreditam salvar-se pelo jejum e abstinência, diz:
“Não é o que entra pela boca que mancha o homem, mas o que dela sai.”
Aos partidários de longas orações, responde:
“Vosso Pai sabe aquilo de que tendes necessidade, antes que lho peçais.”
Jesus condenava o sacerdócio, recomendando aos seus discípulos não escolherem nenhum chefe, nenhum mestre. Seu culto era íntimo, o único digno de espíritos elevados, e a respeito do qual assim se exprime:
“Vai chegar o tempo em que os verdadeiros crentes adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque são estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e cumpre que os seus filhos o adorem em espírito e verdade.”
O Cristo só impõe a prática do bem e da fraternidade:
“Amai vosso próximo como a vós mesmos e sede perfeitos assim como vosso Pai celeste é perfeito. Eis toda a lei e os profetas.”
Em sua simplicidade eloqüente, este preceito revela o fim mais elevado da iniciação – a pesquisa da perfeição, que é, ao mesmo tempo, a do conhecimento e da felicidade. Ao lado desses ensinos que se dirigem aos simples, Jesus também deixou outros, onde a doutrina oculta dos Espíritos é reproduzida em traças de luz. Nem todos podiam subir a tais alturas e eis por que os tradutores e intérpretes do Evangelho alteraram, através dos séculos, a sua forma e corromperam-lhe o sentido. Apesar das alterações, é fácil reconstituir esse ensino a quem se liberta da superstição da letra para ver as coisas pela razão e pelo espírito. É principalmente no Evangelho de S. João que encontraremos feição ainda mais acentuada:
“Há diversas moradas na casa de meu pai. Vou preparar o vosso lugar e, depois que eu for e tudo houver arranjado, voltarei e vos chamarei a mim, para que onde eu estiver também vos encontreis.”
A casa do Pai é o céu infinito com os mundos que o povoam e a vida imensa, prodigiosa, que se espalha na sua superfície. São as inumeráveis estações na nossa jornada, que somos chamados a conhecer se seguirmos os preceitos de Jesus. Ele descerá até nós para induzir-nos, por exemplo, à conquista dos mundos superiores à Terra.
No Evangelho também se nos depara a afirmação das vidas sucessivas da alma:
“Em verdade, se o homem não renascer de novo não poderá entrar no reino de Deus. – O que nasce da carne é carne, o que nasce do espírito, é espírito. – Não vos admireis do que vos digo, pois é necessário nascerdes de novo. – O espírito sopra onde quer e entendeis a sua voz, mas não sabeis donde ela vem, nem para onde vai; também sucede o mesmo com todo homem que nasce do espírito.”
Quando os seus discípulos lhe interrogam: “Por que dizem os escribas que é preciso primeiro que Elias volte?”
Ele responde: “Elias já voltou, porém não o reconheceram.”
E os discípulos compreendem então que Jesus se referia a João Batista. Ainda em outra ocasião diz o seguinte:
“Em verdade, entre todos os filhos de mulher nenhum há maior que João Batista. E se quiserdes entender, é ele mesmo Elias que deve vir. Que ouça aquele que tem ouvidos para ouvir.”
O alvo a que tende cada um de nós e a sociedade inteira está claramente indicado. É o reinado do “Filho do homem”, do Cristo social, ou, em outros termos, o reinado da Verdade, da Justiça e do Amor. As vistas de Jesus dirigem-se para o futuro, para esses tempos que nos são anunciados.
“Enviar-vos-ei o Consolador. – Tinha ainda muitas coisas a dizer-vos, porém ainda não poderíeis compreendê-las. – Quando vier esse Espírito de Verdade, ele vo-las ensinará e restabelecerá tudo no seu sentido verdadeiro.”
Algumas vezes, o Cristo resumia as verdades eternas em imagens grandiosas, em traços brilhantes. Nem sempre os apóstolos o compreendiam, mas ele deixava aos séculos e aos acontecimentos o cuidado de fazer frutificar esses princípios na consciência da Humanidade, como a chuva e o Sol fazem germinar a semente confiada à terra. É nesse sentido que assim se exprimiu: “O céu e a Terra passarão, porém não as minhas palavras.”
Jesus dirigia-se pois simultaneamente ao espírito e ao coração. Aqueles que não tivessem podido compreender Pitágoras e Platão, sentiam suas almas comoverem-se aos eloqüentes apelos do Nazareno. É por aí que a doutrina cristã domina todas as outras. Para atingir a sabedoria, era preciso, nos santuários do Egito e da Grécia, franquear os degraus de uma longa e penosa iniciação, ao passo que pela caridade todos podiam tornar-se bons cristãos e irmãos em Jesus.
Mas, com o tempo, as verdades transcendentais se velaram. Aqueles que as possuíam foram suplantados pelos que acreditavam saber e o dogma material substituiu a pura doutrina. Dilatando-se, o Cristianismo perdeu em valor o que ganhava em extensão.
A ciência profunda de Jesus vinha juntar-se à potência fluídica do iniciado superior, da alma livre do jugo das paixões, cuja vontade domina a matéria e impera sobre as forças sutis da Natureza. O Cristo possuía a dupla vista; seu olhar sondava os pensamentos e as consciências; curava com uma palavra, com um sinal, ou mesmo somente bastando a sua presença. Eflúvios benéficos se lhe escapavam do ser e à sua ordem os maus espíritos se afastavam. Comunicava-se facilmente com as potências celestes e, nas horas de provação, alentava desse modo a força moral que lhe era necessária em sua viagem dolorosa. No Tabor, seus discípulos, deslumbrados, o vêem conversar com Moisés e Elias. É assim mesmo que mais tarde, depois de crucificado, Jesus lhes aparece na irradiação do seu corpo fluídico, etéreo, desse corpo a que Paulo se refere nos seguintes termos: “Há em cada homem um corpo animal e um corpo espiritual.” A existência desse corpo espiritual está demonstrada pelas experiências da psicologia moderna.
Não podem ser postas em dúvida tais aparições, pois explicam por si só a persistência da idéia cristã. Depois do suplício do Mestre e da dispersão dos discípulos, o Cristianismo estava moralmente morto. Foram, porém, as aparições e as conversas de Jesus que restituíram aos apóstolos sua energia e sua fé.
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Negaram certos autores a existência do Cristo e atribuíram a tradições anteriores ou à imaginação oriental tudo o que a respeito foi escrito. Nesse sentido, produziu-se um movimento de opinião, tendente a reduzir às proporções de lenda as origens do Cristianismo.
É verdade que o Novo Testamento contém muitos erros. Vários acontecimentos por ele relatados encontram-se na história de outros povos mais antigos e certos fatos atribuídos ao Cristo figuram igualmente na vida de Krishna e na de Horus. Mas, também existem outras e numerosas provas da existência de Jesus de Nazaré, provas tanto mais peremptórias quanto foram fornecidas pelos próprios adversários do Cristianismo. Todos os rabinos israelitas reconheciam essa existência e dela fala o Talmude nos seguintes termos:
“Na véspera da páscoa foi Jesus crucificado, por se ter entregado à magia e aos sortilégios.”
Tácito e Suetônio mencionam também o suplício de Jesus e o rápido desenvolvimento das idéias cristãs. Plínio, o moço, governador da Bitínia, cinqüenta anos mais tarde, explica esse movimento a Trajano, num relatório que foi conservado.
Como admitir, outrossim, que a crença em um mito houvesse bastado para inspirar aos primeiros cristãos tanto entusiasmo, coragem e firmeza em face da morte; que lhes tivesse dado os meios de derribarem o Paganismo, de se apossarem do império romano e, de século em século, invadirem todas as nações civilizadas? Não é sobre uma ficção que se funda solidamente uma religião que dura vinte séculos e revoluciona metade do mundo. E, se nos remontarmos da grandeza dos efeitos à força das causas que os produziram, pode-se com certeza dizer que há sempre uma personalidade eminente na origem de uma grande idéia.
Quanto às teorias que de Jesus fazem uma das três pessoas da Trindade, ou um ser puramente fluídico, uma e outra parecem igualmente pouco fundadas. Pronunciando estas palavras: “De mim se afaste este cálice”, Jesus revelou-se homem, sujeito ao temor e aos desfalecimentos. Como nós, sofreu, chorou e esta fraqueza inteiramente humana, aproximando-nos dele, o faz ainda mais nosso irmão, tornando seus exemplos e suas virtudes mais admiráveis ainda.
O advento do Cristianismo teve resultados incalculáveis. Trouxe ao mundo a idéia humanitária que os antigos não conheceram em toda a sua plenitude. Tal idéia, encarnada na pessoa de Jesus, penetrou pouco a pouco os espíritos e hoje se manifesta no Ocidente com todas as conseqüências sociais que se lhe prendem. A esta idéia, ele acrescentava as da lei moral e da vida eterna, que até aí tinham sido somente do domínio dos sábios e dos pensadores. Desde então, o dever do homem seria preparar por todas as suas obras, por todos os seus atos da vida social e individual, o reinado de Deus, isto é, o do Bem, da Verdade e da Justiça. “Venha a nós o vosso reino, assim na Terra como no céu.”
Mas, esse reinado só se pode realizar pelo aperfeiçoamento de todos, pela melhoria constante das almas e das instituições. Essas noções encerram, pois, em si, uma potência ilimitada de desenvolvimento. E não nos devemos admirar que depois de vinte séculos de incubação, de trabalho obscuro, elas comecem apenas a produzir os seus efeitos na ordem social. O Cristianismo continha, no estado virtual, todos os elementos do Socialismo, mas desviou-se deles desde os primeiros séculos, e os princípios verdadeiros, tornando-se desconhecidos pelos seus representantes oficiais, passaram para a consciência dos povos, para a alma desses mesmos que, não se acreditando ou não se dizendo cristãos, trazem inconscientemente em si o ideal sonhado por Jesus.
Não é, pois, na Igreja nem nas instituições do pretenso direito divino, o qual outra coisa não é que o reinado da força, onde se deve procurar a herança do Cristo. Essas, em realidade, não passam de instituições pagãs ou bárbaras. O pensamento de Jesus, agora, só vive na alma do povo. É por seus esforços para elevar-se, é por suas aspirações para um estado social mais conforme à Justiça e à Solidariedade, que se revela essa grande corrente humanitária, cuja nascente está no alto do Calvário e cujas ondas nos arrastam para um futuro que jamais conhecerá as vergonhas do pauperismo, da ignorância ou da guerra.
O Catolicismo desnaturou as belas e puras doutrinas do Evangelho com falsas concepções de salvação pelas indulgências ou graças, de pecado original, de inferno e de redenção. Porém, o Catolicismo, na obra do Cristianismo, não passa em realidade de um elemento parasita, que parece ter tomado à Índia sua organização hierárquica, seus sacramentos e símbolos.
Numerosos concílios têm, em todos os séculos, discutido a Bíblia, modificado os textos, proclamado novos dogmas, afastando-se cada vez mais dos preceitos do Cristo. O fausto e a simonia invadiram o culto. A Igreja dominou o mundo pelo terror, pela ameaça com os suplícios e, no entanto, Jesus queria reinar pelo amor e pela caridade. Armou uns povos contra outros, animou e tornou sistemática a perseguição, fez correr rios de sangue.
Em vão a Ciência, em sua marcha progressiva, assinalou as contradições que existem entre o ensino católico e a ordem real das coisas; a Igreja não trepidou em maldizê-la como invenção de Satanás. Um abismo agora separa as doutrinas romanas da antiga sabedoria dos iniciados, que foi a mãe do Cristianismo. O materialismo aproveitou-se deste estado de coisas e implantou em toda parte as suas raízes vivazes.
Por outro lado, sensivelmente se enfraqueceu o sentimento religioso. O dogma não exerce atualmente influência alguma sobre a vida das sociedades. Fatigada dos embaraços em que a tinham envolvido, a alma humana atirou-se para a luz; despedaçou esses frouxos laços para unir-se aos grandes espíritos, que não pertencem a uma seita nem a uma raça determinada, mas cujo pensamento alumia e aquece a Humanidade inteira. Livre de qualquer tutela sacerdotal, ela quer, para o futuro, pensar, proceder e viver por si mesma.
Só queremos falar do Catolicismo com moderação. Essa religião, não o esqueçamos, foi a de nossos pais; embalou inumeráveis gerações. A moderação, porém, não exclui o exame. Ora, duma análise séria resulta isto: a Igreja infalível enganou-se, tanto na sua concepção física do Universo, como na sua idéia moral da vida humana. A Terra não é o corpo central mais importante do Universo, nem a vida presente é o único teatro das nossas lutas e do nosso progresso. O trabalho não é um castigo, mas sim um meio regenerador pelo qual se fortifica e eleva a Humanidade. O Catolicismo, pela sua falsa idéia da vida, foi conduzido ao ódio do progresso e da civilização, e este sentimento está, sem nenhuma reserva, expresso no último artigo do Syflabus:
“Anátema sobre esses que pretendem que o pontífice romano deve reconciliar-se com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna.”
O Catolicismo atribui ao Ser Supremo fraquezas iguais às nossas. Faz dele uma espécie de carrasco que vota aos últimos suplícios os seres débeis, obra das suas mãos. Os homens, criados para a felicidade, sucumbem em multidão às tentações do mal e vão povoar os infernos. Assim, sua impotência iguala sua imprevidência, e Satanás é mais hábil que Deus.
Será esse o Pai que Jesus nos faz conhecer, quando nos recomenda, em seu nome, o esquecimento das ofensas; quando nos aconselha dar o bem pelo mal e nos prega a piedade, o amor, o perdão? O homem compassivo e bom será, portanto, superior a Deus?
É verdade que, para intentar a salvação do mundo, Deus sacrifica o seu próprio filho, membro da Trindade e parte de si mesmo, o que é cair ainda num erro monstruoso e justificar a alusão de Diderot: “Deus matou Deus para apaziguar Deus.”
O Catolicismo, nos tempos de perseguição, escavou bastantes cárceres, ateou muitas fogueiras, inventou torturas inauditas. Porém tudo isso é pouco ao lado da influência perniciosa que derramou sobre as almas. Não só torturou os corpos, mas também obscureceu as consciências pela superstição, turvou as inteligências pela idéia terrível e sombria de um Deus vingador. Ensinou a abafar as dúvidas, a aniquilar a razão e as mais belas faculdades, a fugir, como de animais ferozes, de todos os que livre e sinceramente procuravam a verdade e a estimular somente aqueles que suportavam o mesmo jugo. As cruzadas do Oriente e do Ocidente, os autos-de-fé e a Inquisição são males menores do que essa tirania secular e do que esse espírito de seita, carolice e intolerância, em cujo meio se velou a inteligência e se falseou o discernimento de centenas de milhões de homens.
Depois, ao lado do ensino errôneo, os abusos sem-número, as preces e as cerimônias tarifadas, a tabela dos pecados, a confissão, as relíquias, o purgatório, o resgate das almas, enfim, os dogmas da infalibilidade do papa e da Imaculada Conceição, o poder temporal, violação flagrante deste preceito do Deuteronômio (capítulo 18º, versículos 1 e 2): que proíbe aos sacerdotes “possuírem bens da Terra e co-participarem de qualquer herança, porque o Senhor é que é a sua herança”; tudo isto mostra a distância que separa as concepções católicas dos verdadeiros ensinos do Evangelho.
Contudo, a Igreja fez obra útil. Teve suas épocas de grandeza. Opôs diques à barbaria, cobriu o mundo com instituições de beneficência. Mas, como que petrificada em seus dogmas, ela se imobiliza, enquanto em torno de si tudo caminha e avança; de dia em dia, a Ciência avulta e a razão humana se enriquece.
Nada escapa à lei do progresso, e as religiões são como tudo o mais. Puderam corresponder às necessidades de uma época e de um estado social atrasados, porém chega o tempo em que, encerradas nas suas fórmulas como num círculo de ferro, devem resignar-se a morrer. É a situação do Catolicismo. Tendo dado à História tudo o que lhe podia oferecer e tornando-se impotente para fecundar o Espírito humano, este o abandona e, em sua marcha incessante, adianta-se para concepções mais vastas e elevadas. Mas, nem por isso perecerá a idéia cristã; esta somente se transformará para reaparecer sob forma nova e mais depurada. Chegará a ocasião em que o Catolicismo, seus dogmas e práticas mais não serão que vagas reminiscências quase apagadas da memória dos homens, como o são para nós os paganismos romano e escandinavo. A grande figura do Crucificado dominará os séculos e três coisas subsistirão do seu ensino, por serem a expressão da verdade eterna: a unidade de Deus, a imortalidade da alma e a fraternidade humana.
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Apesar das perseguições religiosas, a doutrina secreta perpetuou-se através dos séculos e o seu vestígio é encontrado em toda a Idade Média.
Já os iniciados judaicos, em época remota, a tinham registrado em duas obras célebres: o Zohar e o Sepher-Yetzirah. O seu conjunto forma a Cabala, uma das obras capitais da ciência esotérica.
No Cristianismo primitivo sente-se perfeitamente acentuado o seu cunho. Os primeiros cristãos acreditavam, com efeito, na preexistência e na sobrevivência da alma em outros corpos, como já vimos a propósito das perguntas feitas a Jesus sobre João Batista e Elias, e também da que os apóstolos fizeram relativamente ao cego de nascença, que parecia “ter atraído esta punição por pecados cometidos antes de nascer”. A idéia da reencarnação estava espalhada de tal forma entre o povo judeu, que o historiador Josefo censurou os fariseus do seu tempo, por não admitirem a transmigração das almas senão entre as pessoas de bem. Os cristãos entregavam-se às evocações e comunicavam-se com os Espíritos dos mortos. Encontram-se nos Atos dos Apóstolos numerosas indicações sobre este ponto; São Paulo, em sua primeira Epístola aos Coríntios, descreve, sob o nome de dons espirituais, todas as espécies de mediunidade. Ele se declara instruído diretamente pelo Espírito de Jesus na verdade evangélica.
Atribuíam-se algumas vezes essas inspirações aos maus Espíritos, aos quais certas pessoas chamavam espírito de Píton:
“Meus bem-amados, dizia João Evangelista, não acrediteis em qualquer espírito, mas vede se os espíritos são de Deus.”
Durante vários séculos, estiveram em uso as práticas espíritas.
Quase todos os filósofos de Alexandria, Fílon, Amônio Sakas, Plotino, Porfírio, Arnóbio, se dizem inspirados por gênios superiores; São Gregório, taumaturgo, recebe os símbolos da fé do Espírito de São João.
A escola de Alexandria resplandecia então com a mais viva claridade, pois todas as grandes correntes do pensamento pareciam aí convergir e se confundir. Essa célebre escola havia produzido uma plêiade de espíritos brilhantes que se esforçavam por fundir a filosofia de Pitágoras e de Platão com as tradições da Cabala judaica e com os princípios do Cristianismo. Esperavam assim formar uma doutrina definitiva de largas e poderosas perspectivas, uma religião universal e imorredoura. Era esse o sonho de Fílon. Como Sócrates, esse grande pensador teve um Espírito familiar que o assistia, inspirava e fazia escrever durante o sono. Também sucedia o mesmo com Amônius e Plotino, os quais, diz Porfiro, eram inspirados por Gênios, “não os que são chamados demônios, mas sim os que são designados como deuses”. Plotino escreveu um livro sobre os Espíritos familiares.
Como esses filósofos, Jâmblico também era versado na teurgia e comunicava-se com o mundo invisível. De todos os campeões do Cristianismo esotérico, Orígenes é o mais conhecido. Esse homem de gênio, que se tornou um grande filósofo e um santo, estabeleceu nas suas obras que a desigualdade dos seres é conseqüência dos seus méritos diversos. As únicas penas, conformes à bondade e à justiça divinas, são, diz ele, as penas medicinais, as que têm por efeito a purificação progressiva das almas nas séries das existências, antes de merecerem admissão no céu. Entre os padres da Igreja, muitos participavam dessas opiniões e apoiavam-se nas revelações dos Espíritos aos profetas ou médiuns.
Tertuliano assim se exprime num trecho da sua Apologética:
“Se é permitido aos mágicos fazer aparecer fantasmas, evocar as almas dos mortos, obrigar os lábios duma criança a proferir oráculos... se eles têm às suas ordens espíritos mensageiros, pela virtude dos quais as mesas profetizam, quanto maior zelo e solicitude não empregarão esses espíritos poderosos para operarem por conta própria o que executam com auxílio de outrem.”
Santo Agostinho, o grande bispo da Hipona, no seu tratado De Cura pra Mortais, fala das manifestações ocultas e ajunta:
“Por que não atribuir esses fatos aos espíritos dos finados e deixar de acreditar que a divina Providência faz de tudo um uso acertado, para instruir os homens, consolá-los e induzi-los ao bem?”
Na sua obra Cidade de Deus, tratando do corpo fluídico, etéreo, suave, que é o invólucro da alma e que conserva a imagem do corpo material, esse padre da Igreja fala das operações teúrgicas, conhecidas sob o nome de Télêtes, que o punham em condições de se comunicar com os Espíritos e os anjos, e de ter visões admiráveis.
Quanto à pluralidade das vidas, afirmada por Orígenes e que Santo Agostinho parece em certos casos combater, pode-se até dizer que ela está estabelecida no seguinte trecho da obra deste:
“Estou convencido de que se achará no Platonismo muitas coisas que não repugnam aos nossos dogmas... A voz de Platão, a mais pura e brilhante que tem havido na filosofia, está inteiramente reproduzida em Platino e lhe é tão semelhante que parecem contemporâneos; entretanto, há um intervalo de tempo tão grande entre os dois, que o primeiro parece até estar ressuscitado no segundo.”
São Clemente de Alexandria e São Gregório de Nice exprimem-se no mesmo sentido. Este último expõe que “a alma imortal deve ser melhorada e purificada; se ela não o foi na existência terrestre, o aperfeiçoamento se opera nas vidas futuras e subseqüentes”.
Tais revelações tinham-se tornado outros tantos embaraços à Igreja oficial. Nelas iam os heréticos basear seus argumentos e sua força; abalada se achava a autoridade do sacerdócio. Com a reencarnação, com o resgate das faltas cometidas, pela prova e pelo trabalho na sucessão das vidas, a morte deixava de ser um motivo de terror; cada qual a si mesmo se libertava do purgatório terrestre por seus esforços e progressos, e o sacerdote perdia a razão de ser. Já não podendo a Igreja abrir à vontade as portas do paraíso e do inferno, via diminuir o seu poder e prestígio.
Julgou, portanto, necessário impor silêncio aos partidários da doutrina secreta, renunciar a toda comunicação com os Espíritos e condenar os ensinos destes como inspirados pelo demônio.
Desde esse dia Satanás foi ganhando cada vez mais importância na religião católica. Tudo o que a esta embaraçava foi-lhe atribuído. A Igreja declarou-se a única profecia viva e permanente, a única intérprete de Deus. Orígenes e os gnósticos foram condenados pelo Concílio de Constantinopla (553); a doutrina secreta desapareceu com os profetas e a Igreja pôde executar à vontade a sua obra de absolutismo e de imobilização.
Viu-se então os sacerdotes romanos perderem de vista a luz que Jesus tinha trazido a este mundo e recaírem na obscuridade. A noite que quiseram para os outros fez-se neles mesmos. O templo deixou de ser, como nos tempos antigos, o asilo da verdade. E esta abandonou os altares para buscar um refúgio oculto. Desceu às classes pobres; foi inspirar humildes missionários, apóstolos obscuros que sob o nome do Evangelho de São João procuravam restabelecer, em diferentes pontos da Europa, a simples e pura religião de Jesus, a religião da igualdade e do amor. Porém estas doutrinas foram asfixiadas pela fumaça das fogueiras, ou afogadas em lagos de sangue.
Toda a história da Idade Média está cheia dessas tentativas do pensamento, desse despertar imponente, vindo depois as reações do despotismo religioso e monárquico, e períodos de triste silêncio.
A ciência sagrada, porém, estava guardada sob diferentes aspectos por diversas ordens secretas. Os Alquimistas, Templários, Rosa-Cruzes e outros lhe conservavam os princípios. Os Templários foram encarniçadamente perseguidos pela Igreja oficial. Esta temia extraordinariamente as escolas secretas e o império que elas exerciam sobre as inteligências. Sob o pretexto de feitiçaria e de pactos com o diabo, as destruía quase todas a ferro e fogo.
O Protestantismo é superior ao Catolicismo porque repousa sobre o princípio do livre exame. Sua moral é mais perfeita e tem o mérito de se aproximar bastante da simplicidade evangélica. Mas a ortodoxia protestante não pode ser considerada como a última palavra da renovação religiosa, pois se apega exclusivamente à “letra que mata” e à bagagem dogmática que em parte conservou.
Apesar dos esforços da teocracia, não se perdeu a doutrina secreta. Por muito tempo ficou velada a todos. Os Concílios e os esbirros do Santo Ofício acreditaram tê-las sepultado para sempre, mas, debaixo da pedra que lhe haviam colocado em cima, ela vivia ainda, semelhante à lâmpada sepulcral que arde, solitária, durante a noite.
Mesmo no selo do clero, sempre houve partidários dessas magníficas idéias de reabilitação pelas provas, da sucessão das vidas e da comunicação com o mundo invisível. Alguns têm até ousado elevar as suas vozes. Há meio século (1843), o Sr. de Montal, arcebispo de Chartres, falava nestes termos sobre a preexistência da alma e sobre as reencarnações:
“Visto não ser proibido acreditar na preexistência das almas, quem saberá o que em épocas vindouras virá a suceder entre as inteligências?”
O Cardeal Bona (o Fénelon da Itália), na sua obra sobre o discernimento dos espíritos, assim se exprime:
“É muito para estranhar que se encontrem homens de bom senso que tenham ousado negar as aparições e as comunicações das almas com os vivos, ou atribuí-las à imaginação transviada, ou ainda às artes do diabo.”
LEON DENIS