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Crenças e Negações









A Gália

A Gália conheceu a grande doutrina; possuiu-a sob uma forma poderosa e original; soube dela tirar conseqüências que escaparam aos outros países. “Há três unidades primitivas, diziam os druidas, Deus, a Luz, e a Liberdade.” Quando a Índia já andava dividida em castas estacionárias, em limites infranqueáveis, as instituições gaulesas tinham por bases a igualdade de todos, a comunidade de bens e o direito eleitoral. Nenhum dos outros povos da Europa teve, no mesmo grau, o sentimento profundo da imortalidade, da justiça e da liberdade.
É com veneração que devemos estudar as tendências filosóficas da Gália, porque aí encontraremos, fortemente denunciadas, todas as qualidades e também todos os defeitos de uma grande raça. Nada é mais digno de atenção e de respeito do que a doutrina dos druidas, os quais não eram bárbaros como se acreditou erradamente durante séculos.
Por muito tempo, só conhecemos os gauleses pelos autores latinos e pelos escritores católicos. Mas, essas fontes devem, a justo título, ser suspeitas, pois esses autores tinham interesse direto em desacreditá-los e em desfigurar suas crenças. César escreveu os Comentários com evidente intenção de se exaltar aos olhos da posteridade. Polião e Suetônio confessam que nessa obra abundam inexatidões e erros voluntários. Os cristãos só vêem nos druidas homens sanguinários e supersticiosos; em seu culto somente encontram práticas grosseiras. Entretanto, certos padres da Igreja – Cirilo, Clemente de Alexandria e Orígenes distinguem com cuidado os druidas da multidão dos idólatras, e conferem-lhes o titulo de filósofos. Entre os autores antigos, Lucano, Horácio e Florus consideravam a raça gaulesa como depositária dos mistérios do nascimento e da morte.
Os progressos dos estudos célticos,[i] a publicação das Tríades e dos cânticos bárdicos[ii] permitem-nos encontrar, em fontes seguras, uma justa apreciação de tais crenças. A filosofia dos druidas, reconstituída em toda a sua amplidão, conforma-se com a doutrina secreta do Oriente e com as aspirações dos espiritualistas modernos, pois, como estes, também afirma as existências progressivas da alma na escala dos mundos. Essa doutrina viril inspirava aos gauleses uma coragem indomável, uma intrepidez tal que eles caminhavam para a morte como para uma festa. Enquanto os romanos se cobriam de bronze e ferro, os gauleses despiam as vestes e combatiam a peito nu. Orgulhavam-se das suas feridas e consideravam cobardia usar-se de astúcia na guerra. Daí os seus repetidos reveses e a sua queda final. Tão grande era a certeza das vidas futuras que emprestavam dinheiro na expectativa de que seriam reembolsados em outros mundos. Os despojos dos guerreiros mortos, diziam, não são mais que invólucros gastos. Como indignos de atenção, eles os abandonavam no campo da batalha, o que era uma grande surpresa para os seus inimigos.
Os gauleses não conheciam o inferno e, por isso, Lucano, no canto primeiro da Farsália, os louva com os seguintes termos:
“Para nós, as almas não se sepultam nos sombrios reinos do Érebo, mas sim voam a animar outros corpos em novos mundos. A morte não é senão o termo de uma vida. Felizes esses povos que não se arreceiam no momento supremo da vida; daí o seu heroísmo no meio de sangrentos combates e o seu desprezo pela morte.”
Os gauleses eram castos, hospitaleiros e fiéis à fé jurada.
Na instituição dos druidas encontraremos a mais alta expressão do gênio da Gália. Os druidas não constituíam um corpo sacerdotal, pois seus títulos equivaliam ao sábio, sapiente. Aqueles que os possuíam tinham a liberdade de escolher a sua tarefa. Alguns, sob o nome de eubages, presidiam às cerimônias do culto, porém o maior número consagrava-se à educação da mocidade, ao exercício da justiça, ao estudo das ciências e da poesia. A influência política dos druidas era grande e tendia a realizar a unidade da Gália. No pais dos Carnutos haviam instituído uma assembléia anual, em que se reuniam os deputados das repúblicas gaulesas e em que se discutiam as questões importantes, os graves interesses da pátria. Os druidas eram escolhidos por eleição e tinham de passar por um preparo de iniciação que exigia vinte anos de estudos.
Praticava-se o culto debaixo da copa dos bosques. Os símbolos eram todos tomados da Natureza. O templo era a floresta secular de colunas inumeráveis, e sob zimbórios de verdura, onde os raios de sol penetravam com suas flechas de ouro, para irem derramar-se sobre a relva em mil tons de sombra e luz. Os murmúrios do vento, o frêmito das folhas, produziam em tudo acentos misteriosos, que impressionavam a alma e a levavam à meditação. A árvore sagrada, o carvalho, era o emblema do poder divino; o visco, sempre verde, era o da imortalidade. Por altar, tinham montões de pedra bruta. “Toda pedra lavrada é pedra profanada”, diziam esses austeros pensadores. Em seus santuários jamais se encontrava objeto algum saído da mão dos homens. Tinham horror aos ídolos e às formas pueris do culto romano.
A fim de que os seus princípios não fossem desnaturados ou materializados por imagens, os druidas proibiam as artes plásticas e mesmo o ensino escrito. Confiavam somente à memória dos bardos e dos iniciados o segredo da sua doutrina. Dai resultou a penúria de documentos relativos a tal época.
Os sacrifícios humanos, tão reprovados aos gauleses, mais não eram, na maior parte, do que execução da justiça. Os druidas, simultaneamente magistrados e executores, ofereciam os criminosos em holocausto à Potência suprema. Cinco anos distanciavam a sentença da execução; nos tempos de calamidade, vítimas voluntárias também se entregavam em expiação. Impacientes de reunirem-se com os seus antepassados nos mundos felizes, de se elevarem para os círculos superiores, os gauleses subiam prazenteiramente para a pedra do sacrifício e recebiam a morte no meio de um cântico de alegria. Mas no tempo de César já haviam caído em desuso essas imolações.
Teutatés, Esus, Gwyon eram, no panteão gaulês, a personificação da força, da luz e do espírito, mas, acima de todas as coisas, pairava a potência infinita, que os gauleses adoravam junto das pedras sagradas, no majestoso silêncio das florestas. Os druidas ensinavam a unidade de Deus.
Segundo as Tríades, a alma gera-se no seio do abismo – anoufn; aí reveste as formas rudimentares da vida; só adquire a consciência e a liberdade depois de ter estado por muito tempo imersa nos baixos instintos. Eis o que a tal respeito diz o cântico do bardo Taliesino, célebre em toda a Gália: “Existindo, desde toda a antiguidade, no meio dos vastos oceanos, não nasci de um pai e de uma mãe, mas das formas elementares da Natureza, dos ramos da bétula, do fruto das florestas, das flores das montanhas. Brinquei à noite, dormi pela aurora: fui víbora no lago, águia nas nuvens, lince nas selvas. Depois, eleito por Gwyon (Espírito divino), pelo Sábio dos sábios, adquiri a imortalidade. Bastante tempo decorreu e depois fui pastor. Vagueei longamente pela Terra antes de me tornar hábil na ciência. Enfim, brilhei entre os chefes superiores. Revestido dos hábitos sagrados, empunhei a taça dos sacrifícios. Vivi em cem mundos; agitei-me em cem círculos.” [iii]A alma, em sua peregrinação imensa, diziam os druidas, percorre três círculos, aos quais correspondem três estados sucessivos. No anoufn sofre o jugo da matéria; é o período animal. Penetra depois no abred, círculo das migrações que povoam os mundos de expiação e de provas; a Terra é um desses mundos e a alma se encarna bastantes vezes em sua superfície. A custa de uma luta incessante, desprende-se das influências corpóreas e deixa o círculo das encarnações para atingir gwynfid, círculo dos mundos venturosos ou da felicidade. Aí se abrem os horizontes encantadores da espiritualidade. Ainda mais acima se desenrolam as profundezas do ceugant, círculo do infinito que encerra todos os outros e que só pertence a Deus. Longe de se aproximar do Panteísmo, como a maior parte das doutrinas orientais, o druidismo afasta-se dele por uma concepção inteiramente diferente sobre a Divindade. A sua concepção sobre a vida também não é menos notável.
Segundo as Tríades, nenhum ser é joguete da fatalidade, nem favorito de uma graça caprichosa, visto preparar e edificar por si próprio os seus destinos. O seu alvo não é a pesquisa de satisfações efêmeras, mas sim a elevação pelo sacrifício e pelo dever cumprido. A existência é um campo de batalha onde o braço conquista seus postos. Tal doutrina exaltava as qualidades heróicas e depurava os costumes. Estava tão longe das puerilidades místicas quanto da avidez ilusória da teoria do nada.
Entretanto, parece ter-se afastado da verdade em certo ponto: foi quando estabeleceu[iv] que a alma culpada, perseverando no mal, pode perder o fruto de seus trabalhos e recair nos graus inferiores da vida, donde lhe será necessário recomeçar sua longa e dolorosa ascensão. Mas, ajuntam as Tríades, a perda da memória lhe permite recomeçar a luta, sem ter, por obstáculos, o remorso e as irritações do passado. No Gwynfid recupera, com todas as recordações, a unidade da sua vida e reata os fragmentos esparsos pela sucessão dos tempos.
Os druidas possuíam conhecimentos cosmológicos muito extensos. Sabiam que o nosso planeta rola no espaço, levado em seu curso ao redor do Sol. É o que ressalta deste outro canto de Taliesino, chamado O Cântico do Mundo:[v]“Perguntarei aos bardos, e por que os bardos não responderão? Perguntarei o que sustenta o mundo; porque, privado de apoio, este globo não se desloca. Que lhe poderia servir de apoio?
“Grande viajor é o mundo! Correndo sempre e sem repouso, nunca se desvia da sua linha, e quão admirável é a forma dessa órbita para que jamais se escape dela.”
O próprio César, tão pouco versado nessas matérias, diz-nos que os druidas ensinavam muitas coisas sobre a forma e a dimensão da Terra, sobre o movimento dos astros, sobre as montanhas e os vales da Lua. Dizem que o Universo, eterno e imutável em seu conjunto, se transforma incessantemente em suas partes; que a vida o anima por uma circulação infinita e espalha-se por todos os pontos. Desprovidos dos meios de observação de que dispõe a ciência moderna, pergunta-se: onde foram os gauleses aprender tais noções?
Os druidas comunicavam-se com o mundo invisível; mil testemunhas o atestam. Nos recintos de pedra evocavam os mortos. As druidesas e os bardos proferiam oráculos. Vários autores referem que Vercingétorix entretinha-se, debaixo das ramagens sombrias dos bosques, com as almas dos heróis mortos em serviço da pátria. Antes de sublevar a Gália contra César, foi para a ilha de Sem, antiga residência das druidesas, e aí, ao esfuziar dos raios,[vi] apareceu-lhe um Gênio que predisse sua derrota e seu martírio.
A comemoração dos mortos é de iniciativa gaulesa. No dia primeiro de novembro celebrava-se a festa dos Espíritos, não nos cemitérios – os gauleses não honravam os cadáveres –, mas sim em cada habitação, onde os bardos e os videntes evocavam as almas dos defuntos. No entender deles, os bosques e as charnecas eram povoados por Espíritos errantes. Os Duz e os Korrigans eram almas em procura de novas encarnações.
O ensino dos druidas adaptava-se, na ordem política e social, a instituições conforme à justiça. Os gauleses, sabendo que eram animados por um mesmo princípio, chamados todos aos mesmos destinos, sentiam-se iguais e livres. Em cada república gaulesa, os chefes eram oportunamente eleitos pelo povo reunido. A lei céltica punia, com o suplício do fogo, os ambiciosos e os pretendentes à coroa. As mulheres tomavam parte nos conselhos, exerciam funções sacerdotais, eram videntes e profetas. Dispunham de si mesmas e escolhiam seus esposos. A propriedade era coletiva, pertencendo todo o território à república. Por forma alguma era entre eles reconhecido o direito hereditário: a eleição decidia tudo.
A longa ocupação romana, depois a invasão dos francos e a introdução do feudalismo, fizeram esquecer essas verdadeiras tradições nacionais. Mas, também veio o dia em que o velho sangue gaulês se agitou nas veias do povo; em seu torvelinho a Revolução derrocou estas duas importações estrangeiras: a teocracia de Roma e a monarquia implantada pelos francos. A velha Gália encontrou-se inteira na França de 1789.
Uma coisa capital faltava-lhe entretanto: a idéia da solidariedade. O druidismo fortificava nas almas o sentimento do direito e da liberdade; mas, se os gauleses se sabiam iguais, nem por isso se sentiam bastante irmãos. Daí, essa falta de unidade que perdeu a Gália. Curvada sob uma opressão de vinte séculos, purificada pela desgraça, esclarecida por luzes novas, tornou-se por excelência a nação una, indivisível. A lei da caridade e do amor, a melhor que o Cristianismo lhe fez conhecer, veio completar o ensino dos druidas e formar uma síntese filosófica e moral cheia de grandeza.
*Do seio da Idade Média, como uma ressurreição do espírito da Gália, ergue-se uma figura brilhante. Desde os primeiros séculos da nossa era, Joana d'Arc fora anunciada por uma profecia do Bardo Myrdwyn ou Merlin. É debaixo do carvalho das fadas, perto da mesa de pedra, que ela ouve muitas vezes “suas vozes”. É cristã piedosa, mas acima da Igreja terrestre coloca a Igreja eterna, “a do alto”, a única a que se submete em todas as coisas.[vii]Nenhum testemunho da intervenção dos Espíritos na vida dos povos é comparável à história, tocante da Virgem de Domrémy. Em fins do século 15, agonizava a França sob o jugo férreo dos ingleses. Com o auxílio de uma jovem, uma criança de dezoito anos, as potências invisíveis reanimam um povo desmoralizado, despertam o patriotismo extinto, inflamam a resistência e salvam a França da morte.
Joana jamais procedeu sem consultar “suas vozes” e, quer nos campos de batalha, quer perante os juizes, elas sempre lhe inspiraram palavras e atos sublimes. Um só momento, na prisão em Ruão, essas vozes parecem abandoná-la. Foi então que, acabrunhada pelo sofrimento, consentiu em abjurar. Desde que os Espíritos se afastam, torna-se mulher; fraquejada, submete-se. Depois, as vozes fazem-se ouvir de novo e, então, ela levanta logo a cabeça diante dos juizes:
“A voz me disse que era traição abjurar. A verdade é que Deus ma enviou; o que fiz está bem-feito.”
Sagrada pelos seus martírios dolorosos, Joana tornou-se um exemplo sublime de sacrifício, um objeto de admiração, um profundo ensino para todos os homens.

[i]    Philosophie Gauloise, por Gatlen Arnoult; Histoire de France, por Henri Martin; Bibliothêque de Genêve, por Adolphe Pictet; Immortalité, por Altred Dumesnhi; L’Esprit de la Gaule, por Jean Reynaud.
[ii]   Cyfrinach Beirdd Inys Prydaln: Mystêres des bardes de l’lie de Bretagne, trad. Edward Williams, 1794.[iii]   Barddas, cad. Goddeu.[iv]   Triades Bardiques, nº 26, publicadas pela escola céltica de Glamorgan.[v]    Barddas, cad. Goddeu.
[vi]   Histoire Nationale des Gaulois, por Bosc e Bonnemère.
[vii]
  Procès de Réhabilitation de la Pucelle(segundo os documentos da Escola de Chartes).


                LEON DENIS

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