BIOGRAFIA,Luís de Camões PARTE 03


Luís de Camões PARTE 03

                                                  Rimas
A obra lírica de Camões, dispersa em manuscritos,  foi reunida e publicada postumamente em 1595 com o título de Rimas. Ao longo do século XVII, o crescente prestígio do seu épico contribuiu para elevar ainda mais o apreço por estas outras poesias. A coletânea compreende redondilhas, odes, glosas, cantigas, voltas ou variações, sextilhas, sonetos, elegias, écoglas e outras estâncias pequenas. A sua poesia lírica procede de várias fontes distintas: os sonetos seguem em geral o estilo italiano derivado de Petrarca, as canções tomaram o modelo de Petrarca e de Pietro Bembo. Nas odes verifica-se a influência da poesia trovadoresca de cavalaria e da poesia clássica, mas com um estilo mais refinado; nas sextilhas aparece clara a influência provençal; nas redondilhas expandiu a forma, aprofundou o lirismo e introduziu uma temática, trabalhada em antíteses e paradoxos, desconhecida na antiga tradição das cantigas de amigo, e as elegias são bastante classicistas. As suas estâncias seguem um estilo epistolar, com temas moralizantes. A écoglas são peças perfeitas do género pastoral, derivado de Virgílio e dos italianos.  Em muitos pontos de sua lírica também foi detectada a influência da poesia espanhola de Garcilaso de la Vega, Jorge de Montemor, Juan Boscán, Gregorio Silvestre e vários outros nomes, conforme apontou seu comentador Faria e Sousa. A despeito dos cuidados do primeiro editor das Rimas, Fernão Rodrigues Lobo Soropita, na edição de 1595 foram incluídos vários poemas apócrifos. Muitos poemas foram sendo descobertos ao longo dos séculos seguintes e a ele atribuídos, mas nem sempre com uma análise crítica cuidadosa. O resultado foi que, por exemplo, enquanto nas Rimas originais havia 65 sonetos, na edição de 1861 de Juromenha havia 352; na edição de 1953 de Aguiar e Silva ainda eram listadas 166 peças.

Além disso, muitas edições modernizaram ou "embelezaram" o texto original, prática acentuada em particular depois da edição de 1685 de Faria e Sousa, fazendo nascer e enraizar uma tradição própria sobre esta lição adulterada que causou enormes dificuldades para o estudo crítico. Estudos mais científicos só começaram a ser empreendidos no final do século XIX, com a contribuição de Wilhelm Storck e Carolina Michaelis de Vasconcelos, que descartaram diversas composições apócrifas. No início do século XX os trabalhos continuaram com José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, que publicaram em 1932 as Rimas numa edição que chamaram de "crítica", embora não merecesse o nome: adotou largas partes da lição de Faria e Sousa, mas os editores alegaram ter usado as edições originais, de 1595 e 1598. Por outro lado, levantaram definitivamente a questão da fraude textual que vinha se perpetuando há muito tempo e havia adulterado os poemas a ponto de se tornarem irreconhecíveis.  Um exemplo basta:
Edição de 1595: "Aqui, ó Ninfas minhas, vos pintei / Todo de amores um jardim suave; / Das aves, pedras, águas vos contei, / Sem me ficar bonina, fera ou ave.".
Edição de 1685: "Aqui, fremosas ninfas, vos pintei / Todo de amores um jardim suave; / De águas, de pedras, de árvores contei, / De flores, de almas, feras, de uma, outra ave."  
Parece ser impossível chegar-se, neste expurgo, a um resultado definitivo. Entretanto, sobrevive material autêntico em quantidade suficiente para garantir a sua posição como o melhor lírico português e o maior poeta da Renascença em Portugal.


                                              Comédias
O conteúdo geral de suas obras para o palco combina, da mesma forma que n'Os Lusíadas, o nacionalismo e a inspiração clássica. A sua produção neste campo se resume em três obras, todas no género da comédia e no formato de auto: El-Rei Seleuco, Filodemo e Anfitriões. A atribuição do El-Rei Seleuco a Camões, porém, é controversa. A sua existência não era conhecida até 1654, quando apareceu publicada na primeira parte das Rimas na edição de Craesbeeck, que não deu detalhes sobre a sua origem e teve poucos cuidados na edição do texto. A peça também diverge em vários aspetos das outras duas que sobreviveram, tais como em sua extensão, bem mais curta (um ato), na existência de um prólogo em prosa, e no tratamento menos profundo e menos erudito do tema amoroso. O tema, da complicada paixão de Antíoco, filho do rei Seleuco I Nicator, por sua madrasta, a rainha Estratonice, foi tirado de um facto histórico da Antiguidade transmitido por Plutarco e repetido por Petrarca e pelo cancioneiro popular espanhol, trabalhando-o ao estilo de Gil Vicente. 
Anfitriões, publicado em 1587, é uma adaptação do Amphitryon de Plauto, onde acentua o carácter cómico do mito de Anfitrião, destacando a omnipotência do amor, que subjuga até os imortais, também seguindo a tradição vicentina. A peça foi escrita em redondilhas menores e faz uso do bilinguismo, empregando o castelhano nas falas do personagem Sósia, um escravo, para assinalar seu baixo nível social em passagens que chegam ao grotesco, um recurso que aparece nas outras peças também. O Filodemo, composto na Índia e dedicado ao vice-rei Dom Francisco Barreto, é uma comédia de moralidade em cinco atos, de acordo com a divisão clássica, sendo das três a que se manteve mais viva no interesse da crítica pela multiplicidade de experiências humanas que descreve e pela agudeza da observação psicológica. O tema versa sobre os amores de um criado, Filodemo, pela filha, Dionisa, do fidalgo em casa de quem serve, com traços autobiográficos. [85][86] Camões via a comédia como um género secundário, de interesse apenas como um divertimento de circunstância, mas conseguiu resultados significativos transferindo a comicidade dos personagens para a ação e refinando a trama, pelo que apontou um caminho para a renovação da comédia portuguesa. Entretanto, sua sugestão não foi seguida pelos cultivadores do género que o sucederam.


                                Núcleos temáticos da obra camoniana
                         A conquista, o herói português e o papel da arte
Para Ivan Teixeira, embora Os Lusíadas não tenha sido escrito por encomenda do Estado, ajustou-se perfeitamente a uma necessidade cultural da empreitada expansionista. Camões acreditava no discurso dominante em Portugal na sua época, de que os portugueses tinham uma missão civilizadora a cumprir no mundo. No texto essa missão é explicitada, mas a ideologia não tolda a sua arte. Ao contrário, é a Poesia que dá amplitude à História, uma amplitude que Camões imaginava ser o dever do poeta revelar aos seus contemporâneos, apoiando-se na glória do passado e do presente para subir num voo alto e perscrutar com o olho do espírito as perspetivas ainda mais grandiosas no distante horizonte do futuro, trazendo através da Arte de volta para o mundo a visão recebida, a fim de que a Arte infundisse na História um sentido novo, garantisse o significado superior dessa História na imortalidade de uma Arte que lhe faz jus, reacendendo com isso o ardor do português por conquistas ainda maiores. Como sugeriu Alcyr Pécora, é como se sem a epopeia o Bem da proeza não se pudesse cumprir integralmente. As armas apenas não bastam para a grandeza, é necessário que as artes a cantem, e se o herói não estima a arte, limita-se a sua virtude, e perde a capacidade de atingir o sublime.  Camões, sem modéstia, colocou-se como a voz desse canto necessário à grandeza de Portugal, mas consternado acusava a ingratidão e as injustiças que sofria:
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos:
.....
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram
.....
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,

Que assim sabem prezar, com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!"   
— Os Lusíadas, Canto VII

Porém, mesmo à sua própria custa, fica evidente que seu intento não foi apenas glorificar os portugueses, mas sim divinizá-los, seja celebrando os seus feitos positivos, seja corrigindo o seu mau comportamento.  Os Lusíadas é, assim, não só história e apologia, não só "engenho e arte", mas uma crítica de costumes, um ditado ético, um complexo e por vezes contraditório programa político, e uma promessa de futuro melhor, um futuro que jamais foi sonhado para qualquer povo. No poema, grandes figuras da Antiguidade aparecem ofuscadas diante do que realizaram e realizariam os varões de Portugal. Os portugueses tornar-se-ão divinos não só pela fortaleza de ânimo, pela coragem física diante do inimigo, mas pelo exercício das mais altas virtudes. Para Camões os lusos estavam destinados a substituir a fama dos Antigos porque as suas proezas os excediam.  Nem a veneração à Antiguidade que o poeta nutria foi capaz de sobrepujar a sua conceção dos portugueses como heróis sublimes:
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a Musa antígua canta,
Que outro valor mais alto se alevanta    
— Os Lusíadas, Canto I
Mas aqui transparece um dos paradoxos da ideologia política de Camões, ou talvez a sua prudência e sabedoria, pois enquanto que Os Lusíadas são por um lado um louvor ao espírito de conquista, a profética condenação, pela voz do Velho do Restelo, da "vã cobiça" dos portugueses, do seu desejo pela "glória de mandar", e "desta vaidade a quem chamamos fama", provavelmente ecoa uma corrente de pensamento de sua época que era contrária às premissas da navegação, deixando "às portas o inimigo, por ires buscar outro de tão longe, por que se despovoe o Reino antigo, se enfraqueça e se vá deitando a longe". Sua aparição encerra advertindo os portugueses contra a húbris, os "altos desejos", lembrando como Faetonte, "o moço miserando", causou a sua própria ruína tentando conduzir o carro solar de seu pai, Hélios, sem possuir a capacidade de fazê-lo, sendo por isso fulminado por Zeus, e como Ícaro sucumbiu à tentação de voar até ao sol com as suas asas de cera, vendo-as derreter e precipitando-se mortalmente para a terra.

O amor e a mulher
Dos temas mais presentes na lírica camoniana o do amor é central e ocorre de modo conspícuo também n' Os Lusíadas. Na sua conceção incorporou elementos da doutrina clássica, do amor cortês e da religião cristã, concorrendo todos para incentivar o amor espiritual e não o carnal. Para os clássicos, especialmente na escola platónica, o amor espiritual é o mais elevado, o único digno dos sábios, e esta espécie de afeto incorpóreo acabou por ser conhecida como amor platónico. Na religião cristã da sua época o corpo era visto como fonte de um dos pecados capitais, a luxúria, e por isso sempre foi encarado com desconfiança quando não desprezo; conquanto fosse aprovado o amor nas suas versões espirituais, o amor sexual era permitido primariamente para a procriação, ficando o prazer em plano secundário. Da poesia trovadoresca herdou a tradição do amor cortês, que é ele mesmo uma derivação platónica que coloca a dama num patamar ideal, jamais atingível, e exige do cavaleiro uma ética imaculada e uma total subserviência em relação à amada. Nesse contexto, o amor camoniano, como expresso nas suas obras, é, por regra, um amor idealizado que não chega a vias de facto e se expressa no plano da abstração e da arte. Contudo, é um amor preso no dualismo, é um amor que, se por um lado ilumina a mente, gera a poesia e enobrece o espírito, se o aproxima do divino, do belo, do eterno, do puro e do maravilhoso, é também um amor que tortura e escraviza pela impossibilidade de ignorar o desejo de posse da amada e as urgências da carne. Queixou-se o poeta inúmeras vezes, amargamente, da tirania desses amores impossíveis, chorou as distâncias, as despedidas, a saudade, a falta de reciprocidade, e a impalpabilidade dos nobres frutos que produz.  Tome-se como exemplo um soneto muito conhecido:
    Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?    
— Rimas
Todos os paradoxos criados pela idealização amorosa são enfatizados pela própria estrutura poética, cheia de antíteses, metáforas, silogismos, oposições e inversões, que na análise de Cavalcante

"... configuram um jogo elegante e sonoro de linguagem enquanto o poema desenvolve os paradoxos para expressar o sentido tanto universal quanto contraditório do amor. Diante do sentimento, o homem torna-se frágil, a linguagem é insuficiente, a palavra, ilógica e sem razão. Ao expressar o "eu" universal, Camões joga com escrita/escritura, fazendo desta última o mais puro "estranhamento" e novidade, ainda que pudesse estar inspirado nos modelos clássicos". 
Se a consumação terrena é impossível, pode ser necessária a própria morte dos amantes, para que se possam unir no Paraíso. Desta forma, o tema da morte acompanha o do amor em muito da poesia de Camões, seja de forma explícita ou implícita.  Nem sempre, porém, o amor lhe foi um drama, e o poeta foi capaz de expressar o seu lado puramente jubiloso e tranquilo, tocando, como observou Joaquim Nabuco, o cerne de simplicidade do sentimento.  Como exemplo, deu o seguinte soneto:
Transforma-se o amador na cousa amada
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada
Que mais deseja o corpo alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.

Mas esta linda e pura Semidea
Que como o acidente em seu sujeito,
Assi com a alma minha se conforma;

Está no pensamento como ideia;
E o vivo, o puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.    
— Rimas

De qualquer forma, apesar das frustrações e do sofrimento recorrente, para Camões o amor valia a pena de ser vivido: "As lágrimas inflamam o meu amor e sinto-me contente de mim porque vos amei",[96] e em suas descrições da amada abundam imagens pictóricas de grande delicadeza, colocando a mulher como elemento central numa paisagem natural harmoniosa, especialmente na sua lírica derivada mais diretamente de Petrarca e da tradição pastoral portuguesa do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, que evocam o bucolismo clássico. A pintura com palavras traz à frente tanto as belezas naturais e feminis, como é capaz de delinear um perfil psicológico através da descrição dos gestos, das posturas e dos movimentos corpóreos da mulher, como transparece no trecho: "O rosto sobre sua mão / Os olhos no chão pregados / Que do chorar já cansados / Algum descanso lhe dão". 
A dualidade amorosa expressa na lírica camoniana corresponde a duas conceções de mulher: a primeira é de uma criatura angelical, objeto de culto, um ser quase divino, intocável e distante. A sua descrição enfatiza as correspondências entre a sua beleza física e a sua perfeição moral e espiritual.Os seus cabelos são ouro, a sua boca é uma rosa, os seus dentes, pérolas e a sua simples proximidade e contemplação são dádivas celestes. Mas o amor vivido em espírito dá lugar a sentimentos totalizantes que acabam por envolver também a manifestação erótica e hedonista, fazendo um apelo ao desfrute imediato, antes que o tempo consuma os corpos na decrepitude, invocando então a outra mulher, a carnal. Se a união física não acontece, nasce o sofrimento e com ele a alienação do mundo, o desconcerto e a "poesia do desafogo", como a chamou Soares. Na lírica de Camões o fulcro polarizador do prazer e da dor é a mulher e em torno da figura feminina gira todo o pathos amoroso, ela é o ponto de partida e o ponto de chegada de todo o discurso poético.  Mesmo sem jamais ter casado e mesmo adorando à distância suas musas, Camões com toda probabilidade experimentou o amor carnal.


  N' Os Lusíadas, transcendendo a tradição da lírica amorosa petrarquista, encontram-se as passagens relativas ao amor mais carregadas de erotismo da obra camoniana, em várias descrições vívidas, livres, apaixonadas e honestas do encontro sensual e da mulher, não raro banhadas de intenso lirismo. As passagens mais marcantes nesse sentido são o retrato de Vénus e sua subida ao Olimpo, onde seduz Júpiter para que favoreça os portugueses, no Canto II, e as cenas na Ilha dos Amores, nos Cantos IX e X.  Segue um trecho do retrato da deusa:
Os crespos fios d'ouro se esparziam
Pelo colo, que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava, e não se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Menino as almas acendia;
Pelas lisas colunas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.

C'um delgado sendal as partes cobre,
De quem vergonha é natural reparo,
Porém nem tudo esconde, nem descobre,
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, para que o desejo acenda o dobre,
Lhe põe diante aquele objeto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.    
— Os Lusíadas, Canto II
Ficheiro:Desenne - Camões na gruta de Macau.jpg
Para Cidália dos Santos a eficiência da evocação erótica reside na habilidosa criação de um percurso voyeurístico que alterna a exibição e o ocultamento do corpo da deusa, numa escala de intensidade progressiva e com descrições bastante ousadas, ainda que faça uso de uma metáfora para assinalar o foco do desejo sexual, os lábios de sua vulva: "os roxos lírios". Na descrição da Ilha dos Amores a atmosfera erótica é consistentemente mantida através de uma longa passagem, também numa sequência crescente de intensidade, descrevendo desde a criação da ilha, a chegada das ninfas e os preparativos para o desfrute dos portugueses, até ao momento em que os marinheiros iniciam a "caça" às ninfas por entre a floresta e finalmente se unem a elas num momento de prazer libertador e generalizado que compensava todos os trabalhos antes sofridos: 

    Ó que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo    
— Os Lusíadas, Canto IX

Ficheiro:Camões na prisão.jpgFicheiro:Camoes - retrato de goa 2b.jpg

É de notar que a consumação sexual coletiva que ocorre nas Ilha dos Amores, embora com todos os atributos da carnalidade e descrita com detalhes nitidamente eróticos, está distante do carácter de uma orgia desenfreada. As ninfas são deusas, e o amor que oferecem não é vulgar. Na tradição clássica eram entidades que iluminavam o intelecto e presidiam à geração e à regeneração e na epopeia elas aparecem como potenciais matrizes de uma raça sublimada, a "progénie forte e bela" que Camões ansiava ver nascer em Portugal. A própria Ilha dos Amores incorpora vários atributos de um paraíso terreno, onde o vínculo entre homem e mulher é pleno e harmonioso, ao mesmo tempo carnal e espiritual. Na visão de Borges, "a qualidade paradisíaca da Ilha reside exatamente em nela se abolir a divisão e oposição entre corpo e espírito, masculino e feminino, humano e divino, mortal e imortal, atividade e fim, ser e consciência".
À parte as figuras femininas mitológicas, que pertencem ao plano mítico e estão além da História e livres do pecado original, a visão da mulher n' Os Lusíadas revela a opinião geral de seu tempo: as mulheres são tanto mais exaltadas quanto mais se aproximam do comportamento de Maria, mãe de Jesus, modelo máximo de perfeição feminina cristã. Dentro desse padrão, cabiam-lhes as funções de filha, mãe, esposa, dona de casa e devota, fiéis, pacatas, submissas e prontas a renunciar à sua própria vida para servir ao marido, à família e à pátria. Nessa linha, as mulheres do Restelo, Leonor Sepúlveda e Dona Filipa são as mais louvadas, seguindo-se Inês de Castro, que, mesmo sendo uma amante, acaba defendida por conta da sua fidelidade ao príncipe, do seu "puro amor", da sua delicadeza, da sua preocupação maternal com os filhos, do seu sofrimento, expiação e "morte crua". Entretanto, Teresa e, ainda mais, Leonor Teles, são severamente condenadas por causa de seus comportamentos discrepantes do padrão cristão, pondo em perigo a nação.

Ficheiro:Pauwels - Camões.jpgFicheiro:Camões - Rimas 1595.jpg

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